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Epístola sobre um certo acontecido

Caro amigo, E. Fluvius Florense, escrevo para ti pois necessito conversar. Meu peito anda apertado demais, quase enlouquecendo. É sobre aquele assunto. Bem, aconteceu.


Não é difícil notar o quanto mudei ou como estou me expressando nesses últimos dias. Tem sido complicado esconder todas as inquietações do meu ser. Desde os eventos dos quais participo às oficinas do trabalho, boa parte dos que se preocupam vem com aquela enxurrada de questões enfadonhas: “Aconteceu algo? Está tão pálido, emagreceu…”, “Tudo bem contigo? Cadê os projetos? Sumiu, não responde mais ninguém”. Respondo o mais genérico possível, ou, como sempre, somente o que melhor satisfaça as suas perguntas. Não sou de revelar minhas fragilidades humanas, apenas quando encontro um porto seguro (o que é raro de encontrar), pois sempre foi doloroso quando tentei expor meu coração. Sei que cada um tem sua forma de enxergar e lidar com o mundo. Eu tenho o meu.


Desde a minha infância a vida se mostrou no limiar entre o sonho e o pesadelo. A alegria era temperada com tristeza. Os momentos de luz marcados com sombras à espreita, reflexos de algum vazio. Certo dia, na alba da inocência, tive alguns sonhos que me sacudiram. Mesmo os desde meus 3 anos, lembro todos. Mas um tocou minh’alma para sempre: lembro que havia uma casa simples, somente para dois, permeada pelo belo brilho da aurora matinal. Apareceu-me uma bela mulher, mais madura que eu, de presença aconchegante. Não conseguia visualizar bem seu rosto, mas os cabelos… eram únicos, luzentes! Ela era minha parceira, um amor. E tudo tornou-se vida, calor. Sem maldade nenhuma, pois não conhecia nada sobre o que era um relacionamento a dois, ou mesmo beijo ou sexo… Ela era companheira em todos os meus momentos, bons e ruins, e tudo ao seu lado ganhava força motivadora para continuar o viver. Nos espinhos encontrados nos caminhos, éramos um amparo um para o outro. Os pequenos detalhes dos momentos vívidos ganhavam nossos perfumes, como dois bobos, de mãos dadas, indo buscar juntos o leite para o café da manhã. Mas um dia, em um instante indesejável, como se viesse do nada ao nada, ela sumiu. Ou, sem que eu pudesse fazer nada, só assistir, ela morria. Era como se arrancassem tudo que havia de bom em mim e matassem… Lembro que acordava em prantos inocentes. As lágrimas corriam pelo meu rosto de criança, sem alarde, sem entender o que aquilo significava.


Outros sonhos como aquele se repetiram por anos. Se se tornou trauma ou pesadelo presente, não sei. Mas foi ali que, talvez, o medo da solidão e de perder quem se ama surgiu. Forjei meus ideais a partir de então. Fiz promessas para mim mesmo, como “nunca ferir a pessoa que amo”, e valores inegociáveis. Porém, a vida tratou de despedaçar a maioria deles. Somente um resistiu. Um único sonho. O qual me ajudou a sobreviver até aqui. Acho que Petrarca o retratou muito bem para mim: “Mal me dei conta quando de repente/Um dia a me ferir chegou-se Amor/E aos poucos fez-se o único senhor/De minha vida, e mestre onipotente”. Desde aqueles dias, encontrar o real Amor foi o norte no mar revolto do meu coração. Fiz dele objetivo, minha chama incessante. E, assim, meu ser somente funciona quando o amor vem e é combustível para a vida acontecer.


Tive poucos relacionamentos. O primeiro só aconteceu depois da maioridade. Nunca fui como algumas pessoas que só saem em busca de prazeres momentâneos ou experiências passageiras. Amar é uma escolha séria e verdadeira. Sei bem que me aconselhas: “A vida não se resume às nossas certezas. Foque em você mesmo, siga seu caminho. Projete e pense em seu futuro…”, etc. Entendo tudo isso. E acho uma droga, uma chatice. Seguir esse piloto automático de construir carreira que a vida nos impõe correr atrás, sou totalmente contra. Viver não é isso. Caso for, então a vida é uma putrefação monótona e patética. Bem, tenho seguido empurrando as coisas com a barriga, projetos, trabalho, faculdade… fluíram da maneira que pude. Mas por dentro, vazios.


Amar tem seus mistérios. Um dia desses, ele surgiu em mim de uma forma que nunca imaginei. Uma companhia maravilhosa, presença única, que perfumou de amor todo meu ser. Fiquei um pouco inseguro a princípio, pois fazia mais de 3 anos desde o segundo relacionamento, e eu não saía com ninguém. Aconteceu. Era verdadeiro o que floresceu em mim. Desde os pequenos detalhes do dia, conselhos para que eu melhorasse a alimentação, até a forma de reavaliar as pessoas a minha volta, que estavam me usando mais que me ajudando. Busquei exorcizar o passado e tentei amar verdadeiramente em sua completude. Amo-a e não deixarei de amá-la. Tomou de assalto o coração. Nossos encontros no cinema, a cerveja dela e o meu vinho comungando uma conversa maravilhosa, nosso forrozinho na sala de casa e o chamego sensual que varava a madrugada… A felicidade tinha chegado em minha vida!


Por motivos que até agora não decifrei — ou talvez compreenda, mas não aceite —, sem me dar uma chance de conversar pessoalmente, ela se afastou. Parece que o pesadelo de antigamente se fez realidade… Passei por cada coisa na vida, que tinha endurecido o peito. Mesmo criança, nunca fui muito de chorar, expor as lágrimas. Elas doíam muito. Meu peito acreditou (ou fizeram crer) que elas eram testemunhas do fracasso, eram humilhantes, não alívio. Por isso a dificuldade em me expressar. Com esse afastamento, creio que chorei escondido mais do que chorei em toda a minha vida.


Nada nunca me abateu antes como agora. Às vezes, quando os nervos estão explodindo, levanto e saio para caminhar. Mais ou menos às 4h e pouco, quando o manto da madrugada e a neblina suave se encontram. Detesto atividade física. Coloco meu fone de ouvido, seleciono a minha playlist “bad vibes” e vou sem rumo. Aproveito o horário, pois as ruas estão desertas. Não quero ver o rosto de ninguém nem que ninguém veja o meu. É complicado… o sereno da noite, a cada lembrança de amor, faz os meus olhos orvalharem. E não consigo esconder. A caminhada é longa. Imerso no mundo interior e nas reflexões do peito, não ligo nem percebo se o corpo aguenta, se os pés criam feridas, se os nervos doem ou se as pernas cambaleiam dormentes. Apenas sigo em ébrios sentimentos. Volto mais recluso para casa, procurando outras estradas vazias, pois as pessoas começam a sair para suas vidas. Chego, acompanhado da infelicidade de mim mesmo.


Estou cansado, meu amigo. Não vou dizer o clichê “Eram minhas últimas fichas nela”. Mas foi uma promessa, só me permitiria amar de verdade e entregar o coração só mais uma vez, e foi ela… Tenho sentido medo. As indiferenças nas atitudes, o tratamento diferente quando nos esbarramos pelos lugares em comum, a falta de reciprocidade de perguntar como foi meu dia em nossas poucas conversas… Medo de ver um sentimento tão poderoso quanto o amor se tornar ódio ou aversão. Amo e não quero ser traidor desse sentir. Disseste-me certa vez: “Ah, existem muitas no mundo. É uma fase. Verá ao longo da vida que um amor mata outro!”. Pode ser que funcione para outras pessoas, não comigo. Não é descartável ou que visa à utilidade, muito menos um nome em um altar que é trocado quando convém a devoção. Nas prateleiras reservadas ao amor, parece que sou um livro caído atrás da estante, que virou lembrança e que ninguém quer lê-lo.


Bem, E. Fluvius, estou desistindo de muitas coisas e caminhos. Não estou com cabeça para nada, muito menos coração me resta. Não quero escrever mais nada nem ler nada. Sei que passas por momentos difíceis também por Estrasburgo. Não posso ajudar muito, perdoa-me. Caso eu suma, saberás bem o porquê. Infelizmente, a vida continua… talvez não para mim.

Do teu fiel amigo,
Ezequiel Alcântara.

São Gonçalo, maio de 2025.

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Obrigado a todos pela caminhada até aqui!

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