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CINEMA

CINEMA

Entrei no cinema quase vazio e me acomodei logo numa poltrona rente ao corredor. Aproveitando que havia lugares vagos na fileira que escolhi, depositei o enorme saco de pipoca e o copo do refrigerante no banco ao lado, para, com as mãos livres, poder me livrar dos barulhos do celular e cortar, por algum tempo, relação com o mundo lá fora.

Enquanto os trailers e os avisos passavam na tela, distraí-me pensando nas inúmeras vezes em que estive num cinema. Lembro-me das primeiras, com meus pais, nas enormes e opulentas salas de exibição de antigamente, as confortáveis poltronas de veludo grená, o lanterninha que nos guiava pelo breu, seguindo o frágil rastro de luz que seu instrumento apontava no tapete vermelho e felpudo do lugar.

Lembro-me do cheiro, dos barulhos sufocados, da música que nos cobria a todos e nos moldava a emoção para cada cena; lembro os pigarros renitentes, as fungadas que denunciavam a emoção escondida, os gritos abafados, nos sustos; quase ouço, agora, as interjeições que escapavam das bocas surpreendidas, nas cenas românticas ou na vitória final do mocinho sobre o perverso vilão.

Quando íamos ao cinema com os pais, éramos, os filhos, acomodados entre os dois, cada um numa ponta; ele completamente entregue ao filme, fazendo, para si mesmo, sussurrados comentários sobre os atores, a história, os cenários; ela, perseverante, assistindo-nos mais que ao filme, vigiando-nos para que não puséssemos os pés no encosto da poltrona da frente, para que não dormíssemos, para que não ríssemos muito alto, para que não conversássemos, para que prestássemos atenção.

Em vez de me levar à missa, meu pai nos levava ao cinema, religiosamente. Fazia o mesmo com minha mãe. Aliás, adorávamos quando os dois saíam, num sábado, em que ele praticamente a arrastava para irem assistir a um filme, de noite. Ficávamos sozinhos, sem os pais, e a alegre sensação de liberdade tomava conta da casa. Até que a fome chegasse. Ou eles, de volta.

Na adolescência, mantive o quase compromisso divino incutido por meu pai. Algumas poucas vezes, fui ao cinema com amigos, colegas, paqueras, namoradas, mas o que eu gostava mesmo era de ir sozinho. Às vezes, nem ia por causa só do filme, mas para estar ali, sentir a atmosfera que só uma sala de cinema tem, para poder ser solitário sem ter vergonha disso.

Vi de tudo. Uma vez, assisti a uma maratona. Numa mesma noite, o Novecento, de Bertolucci, com quase seis horas de duração. A exibição, que começou à meia noite, juntou uns cem malucos como eu. Havia intervalos de dez minutos entre as partes, para fumar e fazer xixi. Na primeira parada, em que disputamos o cafezinho de três garrafas térmicas, vi dois casais indo embora de soslaio. No segundo intervalo, havia menos da metade das pessoas que vira no primeiro. Terminamos a exibição eu e mais uns dez ou doze maníacos, sol quase nascendo.

Assisti à estreia de Tubarão, ocasião em que quase comecei uma carreira de cambista. Eu cheguei cedo, com um amigo, pouco depois das 14h, porque era dia de Natal. Havia poucas pessoas na fila, que rapidamente se avolumou. Um homem de meia idade, que chegou meia hora depois, vendo a multidão aglomerada perto da bilheteria, abordou-me sem cerimônia. “Compra duas entradas pra mim, eu pago a tua.” E nem me deu direito de resposta. Fiquei com a grana dele na mão sem saber bem o que faria.  Eu ainda tentava me recuperar do susto, quando outro sujeito me enfiou uma nota na mão e ordenou: “Eu quero quatro ingressos: o troco é teu!”

No instante seguinte, a bilheteria abriu e eu, que era o primeiro da fila, junto com meu amigo, introduzi o dinheiro pelo exíguo buraco entre mim e a moça lá dentro, da qual só via o nariz e a boca, e pedi: “Me dá nove ingressos!”

Peguei as entradas e enfiei o troco volumoso no bolso da frente da calça. Saí da fila à procura do amigo e dos compradores. Um de imediato me abordou: Comprou? Tá aqui. Dei-lhe os três ingressos. O rapaz veio em seguida. Passei-lhe os bilhetes, e ninguém perguntou pelo troco. Estava rico. Assisti ao filme rindo de orelha a orelha; enquanto o assassino dos mares fazia seu estrago na tela, mastigando o Robert Shaw impiedosamente, eu acariciava a grana embolada no bolso da calça jeans que testemunhou de tudo comigo na década de 1970. E fazia planos para o pós-cinema.

O filme de agora, sucesso do cinema nacional, começa, e eu sou arrastado lá para dentro dele. Ando pela casa, junto com os personagens, danço com eles, levo sustos, tenho medo e choro na escuridão, baixinho. Mas enxugo a lágrima renitente que escorre pelo rosto quando a Fernanda Torres ordena que todos sorriam. Ir ao cinema pra mim é isso. O filme nem precisava ser tão bom.


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Criada em 2020 pelo professor e poeta Renato Cardoso, a Revista Entre Poetas & Poesias é um periódico digital dedicado à valorização da literatura e da arte em suas múltiplas expressões. Mais que uma revista, é um espaço de conexão entre leitores e autores, entre a sensibilidade poética e a reflexão cotidiana.

Registrada sob o ISSN 2764-2402, a revista é totalmente eletrônica e acessível, com publicações regulares que abrangem poesia escrita e falada, crônicas, ensaios, entrevistas, ilustrações e outras formas de expressão artística. Seu objetivo é tornar a arte acessível, difundindo-a por todo o Brasil e além de suas fronteiras.

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