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O Velho do Sebo

Um certo marinheiro aposentado sem nenhuma preocupação financeira ou familiar, viúvo e com os filhos todos criados – é o que diziam – passava as manhãs a devorar livros e mais livros num sebo de Copacabana. Lia de tudo: história, geografia, religião… Diziam que era místico, louco, pesquisador… ninguém sabia ao certo. Muitas vezes o vi conversando com o nada como se fosse um velho amigo sentado ao seu lado, então achei que fosse mesmo maluco.

Diziam que, após ler toda a sua biblioteca, passou a ler no sebo Mar de Histórias. Acredito que, por ser marinheiro, se identificou com o nome. Eu mesmo o vi por lá diversas vezes. Ora folheava um livro, ora o comentava. Com quem, não faço ideia. Às vezes falava com um tal de Machado, outras com um certo Ramos, outras ainda com Olavo… assim, na maior intimidade. Numa certa manhã em que o encontrei por lá, ele olhou pra mim e me chamou de Alencar. Então achei que ele fosse mesmo maluco, já que meu nome não era esse. Não nos conhecíamos, embora eu o tivesse visto por lá diversas vezes.

Certa vez, cheguei ao sebo e lá estava ele vestido com um surrado uniforme de marinheiro com “Navio Negreiro” nas mãos. Olhou a capa, abriu-o, folheou, colocou-o de volta na estante, pegou-o novamente. Em seguida, dirigiu-se ao balcão e perguntou o preço. Devolveu-o ao lugar. E assim fez com todos os livros que pegava. Cheguei a pensar que fosse um avarento desejoso de ler livros, mas sem coragem de comprá-los. Fiquei curioso com aquela situação e passei a observar seus passos. Ele não demorou muito e se foi.

Sempre que eu passava naquele local – e foram muitas vezes, pois eu era universitário na época e sempre precisava comprar um livro ou outro –, lá estava o homem folheando livros, no entanto nunca o vi comprar nenhum. Era sempre a mesma coisa: abria, folheava, perguntava o preço e o devolvia ao lugar de origem. O vendedor parecia não se incomodar com ele.

Perguntei ao atendente se conhecia aquele estranho senhor pelo qual passei a sentir certa curiosidade. Ele apenas me falou, sem nem mesmo olhar pra mim, que era o Velho do Sebo, e quando eu quis perguntar por que o chamavam assim, o rapaz simplesmente deu as costas e me ignorou.

Mais uma vez fui pra casa com a chama da curiosidade acesa, me queimando por dentro. E se eu perguntasse ao próprio Velho do Sebo por que o chamavam por esse nome? Provavelmente me deixaria no vazio também.

Passei a frequentar o Mar de Histórias duas vezes por semana, às vezes mais, e lá estava ele. Passei a ir três vezes, quatro, cinco, e o homem lá. Eu não aguentava mais aquele suplício. Haveria de ter uma razão de ele estar ali todos os dias. Não tinha cara de professor, pesquisador, crítico literário… nada. O que faria com que uma pessoa como ele fosse a um sebo todos os dias? Ele poderia estar jogando damas ou dominó na pracinha com os amigos, caminhando na praia, brincando com os netos, jogando frescobol no Posto 5… mas não, frequentava um sebo e nunca comprava um livro!

No dia seguinte, acordei cedo e fui esperá-lo. Precisava descobrir esse mistério. Ao entrar no sebo, meus olhos o encontraram com a mesma mania de sempre. Seu olhar encontrou o meu, e vi em seus olhos um olhar de abandono, uma tristeza que contrastava com o verde de seus olhos, que buscavam na prateleira mais um amigo pra conversar. Quis me aproximar dele, mas perdi a coragem. O seu braço trêmulo tentava, lentamente, se arrastar até o objeto desejado. Cheguei a pensar em oferecer-lhe ajuda; recuei. Talvez eu estivesse sendo inconveniente, portanto fiquei apenas observando. Senti-me meio sem graça por querer invadir a privacidade daquele pobre homem, mas não resisti, continuei lá. Quem sabe agora fosse falar com Bilac, Rachel, Lins.

Esperei.

Finalmente, sua mão trêmula alcançou uma Bíblia. Soprou a poeira da capa, folheou-a, parou em Mateus e leu em voz bem audível e triste: “Mateus 11.28: Vinde a mim todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei”.

Dessa vez não perguntou o preço. Achei que tivesse esquecido de perguntar. Em seguida, fechou-a e devolveu-a à prateleira. Levantou ao céu um olhar de piedade e saiu.

Nunca mais o encontrei por lá.


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Criada em 2020 pelo professor e poeta Renato Cardoso, a Revista Entre Poetas & Poesias é um periódico digital dedicado à valorização da literatura e da arte em suas múltiplas expressões. Mais que uma revista, é um espaço de conexão entre leitores e autores, entre a sensibilidade poética e a reflexão cotidiana.

Registrada sob o ISSN 2764-2402, a revista é totalmente eletrônica e acessível, com publicações regulares que abrangem poesia escrita e falada, crônicas, ensaios, entrevistas, ilustrações e outras formas de expressão artística. Seu objetivo é tornar a arte acessível, difundindo-a por todo o Brasil e além de suas fronteiras.

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