Abri a caixa cuidadosamente, com medo de que surpresas desagradáveis saíssem dela ou algo ali me machucasse. Nunca se sabe o que se esconde num lugar de guardar passado. Eu temia um inseto, mas foi pior; liberados do ostracismo e do esquecimento, avançaram sobre mim fantasmas. Centenas, aos borbotões. Como no mito de pandora, saíam do embolorado baú, para assombrar-me, tristezas velhas, lembranças gastas, puídos arrependimentos, desgostos antigos e muita saudade.
Meu pai sorria, de frente pra mim, deitado de bruços na beirinha de uma praia, imerso do joelho pra baixo, as mãos segurando o queixo, os cotovelos fincados na areia. Ali atrás, minha mãe, elegantemente sentada numa cadeira de praia, dentro da água calma da lagoa, fazendo a sua indefectível máscara facial de todas as fotos, algo entre um tímido sorriso e um biquinho recheado de presunção. Minhas irmãs, rechonchudas e de melindrosas, sorriem para o futuro que verão com outros olhos. A tia ranzinza esconde, num sorriso muito fake, a antipatia que sempre entornou em carne e osso.
Vou olhando, uma por uma, as fotos antigas das quais, a partir de agora, e até a morte, serei o fiel portador. Paro a olhar com mais atenção algumas imagens que me arrastam para um flashback instantâneo e doloroso. O que está paralisado, encarcerado em papel cetim, ganha vida e movimento. Caio em segundos num longínquo baile de carnaval e posso até ouvir a banda desencontrada que toca as infalíveis marchinhas, quase todas hoje politicamente incorretas. Rapidamente, a um toque de dedos, despenco num almoço de Natal em família. Sinto o cheiro frio dos restos de comidas diversas e fico aturdido com o alarido da conversa bêbada do fim de festa.
De repente, encontro alguém que não fui: lá estou eu, encostado a um carro, uma criança menor do que o pneu dianteiro do Buick majestoso. Onde me espetavam, eu ficava, até que me resgatassem, sempre fui assim. Por isso, a foto existe. Uma criança saudável teria saído dali em pouquíssimos segundos.
Outro rascunho de mim aparece entre os meus dedos, na foto quase colorida. Já tenho cabelos e apoio o pé direito numa bola de couro, fazendo pose de jogador de futebol. Imagino que estivesse pensando ser o Gérson, um jogador que eu nunca chegaria nem perto de ser, por vários motivos, entre os quais não ser canhoto.
Li em algum lugar que os indígenas brasileiros, acho que os yanomamis, não permitem tirar fotos porque a foto, segundo eles, roubaria a alma da pessoa que teve sua imagem registrada. Nessa mesma reportagem, aprendi que em algumas comunidades indígenas, quando uma pessoa morre, se destrói tudo o que era dela, porque, para esses povos, a gente precisa esquecer a pessoa que morreu. Aí entra a fotografia: ela traria de volta o falecido para o convívio dos vivos, causando um conflito espiritual qualquer.
No meu caso, nada transcendental, as fotos antigas ressuscitam momentos enterrados no fundo da memória. Tento remontar esse filme que passa na minha cabeça, oscilando entre o documentário e a ficção, como de resto foi a minha vida toda: ilusão e realidade, fato e invenção, mentira e verdade. Isso aconteceu mesmo ou será que imaginei, como tantas outras coisas? E essa outra, esteve mesmo aqui, ou foi fruto da minha mente fértil de invencionices, como aquela ali que não está na foto? Quem está por trás dessa imagem, porque me focalizou, o que queria arrancar de mim?
As imagens me fazem chafurdar o passado, e parto numa busca sem fim por respostas. Onde foi parar? Que fim levou? Para quê? Por quê? Será que fiz mesmo aquele gol, estive naquele show, fui de verdade àquela festa?
Nessa fita caótica a que tento emprestar coerência, há lapsos irremediáveis, impreenchíveis. Faltam cenários e pessoas importantes. Dou-me conta de que personagens interessantíssimos saíram cedo do roteiro enquanto outros, insossos, ficaram no set pairando por décadas, fazendo só figuração.
Continuo a desencavar na caixa as memórias impressas de um passado impreciso e sem nexo. Nessa busca aleatória, aparece gente que nem sei quem foi, em lugares em que não estive, e sou surpreendido, de vez em quando, por rascunhos de mim em épocas diferentes: surjo adolescente e transgressor num flash, em seguida, estou reco e comportado; olha um de mim lá atrás, escondendo os dentes; agora, bem na frente, exibido, tocando o violão iniciante, se sentindo o Caetano.
Passo horas sentado sobre as fotos, cavando a caixa que parece não ter fim. Quando penso que acabou, lá vem mais. Mas, preciso parar, seguir a vida; o presente me belisca e me chama, ciumento, para dar conta do dia. Jogo de qualquer maneira as fotos na caixa, que nem fecha mais direito, mentindo aos encaixotados que voltaria para organizá-los em porta-retratos, com a certeza de que nunca mais voltarei a abrir o maldito baú.
Estou com os yanomamis.


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