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Sob outro ponto de vista

Vi quando o corpo do maldito perneta caiu em direção à calçada. Percebi, também, como sua amada levava a mão à boca, suprimindo um gemido, e arregalava os olhos. Imediatamente, estirei meu corpo de mola pela janela, lançando-me no vazio atrás do infeliz. Não, não creiam que eu tinha intenção de salvá-lo. Que morresse! Contudo, um ato de heroísmo me aproximaria da bailarina e eu lhe daria conforto.

— Que tragédia! Nosso valente amigo foi jogado no abismo. Tentei agarrá-lo, juro, mas escapou das minhas mãos.

— Meu querido soldadinho…

— Chore, faz bem. Mas você nunca vai ficar sozinha. Pode contar com minha amizade.

— Me deixe, por favor. Ele vai voltar pra mim.

Por que a ingrata rejeitava meu amor? Por acaso, eu valia menos do que aquele defeituoso? Meu corpo de mola seria inferior a um soldado sem uma das pernas? Ele nunca chegaria à minha inteligência e malícia. Afinal, provoquei sua queda sem que ninguém me pudesse culpar pelo crime. Crime? De jeito nenhum. Justiça. Eu já estava aqui antes, a vi primeiro, a amei primeiro. Ele não tinha o direito de roubá-la de mim.

Durante uma semana, tentei em vão conquistar a bailarina. Estava certo de que meu rival tinha sumido para sempre. Eu, porém, vivia irritado com as recusas constantes da boneca. De qualquer modo, jamais renunciaria ao meu desejo e iria vencer. Por isso, insistia, cada vez de forma mais agressiva.

O pequeno Hans, nosso dono, parecia inconsolável desde a perda do brinquedo. Pouco se divertia. Ficava horas sentado no banco de janela, olhando para baixo e para o além, como se esperasse um milagre. Como podia ter tanto apreço por algo imperfeito?

Fato é que essa ocorrência miraculosa acabou acontecendo. Certa manhã, a cozinheira começou a gritar o nome do patrãozinho. Ele desceu as escadas se arrastando. Pouco tempo depois, no entanto, voltou saltitando e sorrindo. Trazia o aleijado nas mãos. Nunca soube o que lhe aconteceu ao longo daqueles dias, apenas como tinha retornado.

— Bailarina, veja, nosso amigo voltou! Vou colocar ele aqui do seu lado, bem perto da lareira pra se aquecer.

Vi como os olhares da boneca e do meu inimigo se iluminaram. Que ódio senti dos três.

— Você acredita? Ele estava na barriga do peixe que a cozinheira ia fazer pro almoço. Quantas aventuras, meu camarada! Você vai me contar tudo, né?

Dizendo isso, o garoto saiu para dar a notícia aos pais, deixando meu adversário na borda da mesa. Não pensei duas vezes. Saltei da minha caixa, golpeando o móvel com a cabeça uma, duas, três vezes, e fazendo-o oscilar. Com pouco apoio, devido ao seu defeito, ele tombou e foi parar na lareira.

Eu me senti vingado. Porém, a felicidade durou pouco. Por ironia do destino, o vento sacudiu a cortina e jogou minha paixão no fogo, ao lado de seu querido soldado. Quis gritar por socorro, mas humanos não entendem a linguagem dos brinquedos. Só me restou ver arderem meus sonhos e, como um castigo, observar o coração de pedra azul da bailarina para sempre incrustado no coração que se formou com o chumbo derretido do soldadinho.

***

“O Soldadinho de Chumbo” é um dos contos de Hans Christian Andersen. Decidi, nesta quinzena, fechar o mês de abril com uma homenagem ao autor dinamarquês e, também, aos dias Internacional do Livro Infantil (02 de abril, aniversário do escritor) e Mundial do Livro (23 de abril, data da morte de Cervantes, Inca Garcilaso de La Vega e Shakespeare). Em meu reconto, optei por explorar a perspectiva do boneco de mola, apaixonado pela bailarina e rival do soldadinho. Um gênio malvado entre os brinquedos que, apesar de suas artimanhas, não conseguiu alcançar seu intento.


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Criada em 2020 pelo professor e poeta Renato Cardoso, a Revista Entre Poetas & Poesias é um periódico digital dedicado à valorização da literatura e da arte em suas múltiplas expressões. Mais que uma revista, é um espaço de conexão entre leitores e autores, entre a sensibilidade poética e a reflexão cotidiana.

Registrada sob o ISSN 2764-2402, a revista é totalmente eletrônica e acessível, com publicações regulares que abrangem poesia escrita e falada, crônicas, ensaios, entrevistas, ilustrações e outras formas de expressão artística. Seu objetivo é tornar a arte acessível, difundindo-a por todo o Brasil e além de suas fronteiras.

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