Eu estava no ponto do ônibus, com mais umas quinze pessoas, todas atrasadas. Um carro grande, imponente, parou uns cem metros à frente. A porta do carona se abriu e, em vez de sair por ela uma pessoa, foi colocado pra fora um cachorro. Imediatamente depois, o SUV deu a partida e sumiu no mundo. O cão ficou ali por uns segundos, sem entender nada, latindo para quem tentava se aproximar dele. Até que, possivelmente por medo, saiu em disparada, pelo meio da rua, na mesma direção em que seguiu o carro que o cuspira fora, desafiando os automóveis, ziguezagueando perigosamente entre eles, esbaforido, desesperado.
No ponto, algumas pessoas que presenciaram a cena começaram a conjecturar. Viu, a pessoa abandonou o cachorro. É de raça! Tem até coleira! É grande! Está bem tratado! Como é que alguém abandona assim um animal de estimação? Que gente ruim! Vai ser atropelado! Coitado!
Pensei no desespero do animal que, minutos antes, estava em casa, refestelado no seu tapete favorito, após fazer com gosto a sua última refeição doméstica. O humano que estava com ele pegou a coleira. Ele se pôs de pé, a abanar o cotoco onde havia originalmente um rabo: sabia o que isso significava. Estava na hora do passeio. Nem se deu conta de que não era bem naquele momento do dia que costumava sair para passear, nem era, pra falar a verdade, esse cara quem o acompanhava nas idas diárias à rua; era a menina, que, ele percebeu, não estava. “Bem, hoje é ele! Vamos nessa, os humanos são imprevisíveis. O importante é sair um pouco, pegar um sol, esticar as pernas, fazer xixi no poste, cheirar umas flores, ver cães diferentes por aí. Quem sabe hoje não encontro a cadela da minha vida?”
“Não há um único animal humilde na Inglaterra que não fuja da sombra do homem, feito uma alma penada do purgatório. Nenhum mamífero, nenhum peixe, nenhuma ave deixa de fazê-lo. Basta estender o trajeto da sua caminhada até o barranco de um rio e até os peixes vão disparar para longe de você. É preciso ter feito algo sério, acredite em mim, para ser temido desse jeito em todos os elementos que existem.”
Quem diz isso é o rei Arthur, aquele da espada cravada na pedra, já velho, no livro The once and future king (“O único e eterno rei”, do britânico T. H. White (1906-1964).
Lembro dessa passagem do livro ao ler, estarrecido, que no Rio de Janeiro, em 2024, 1.365 animais foram abandonados em praças, ruas, avenidas, parques e nas praias da cidade. A maioria dos pets largados à própria sorte é de cães, de todas as raças. Mas há também entre os desprezados gatos, aves de todo tipo, cabras, um cavalo e, até, tartarugas. Fico me perguntando o que levou a dona ou o tutor, como se diz agora, a pegar o bichinho que acolheu cheio de afeto e para o qual certamente, comprou caminha, brinquedinhos e ração e jogá-lo fora, como lixo, agora?
Penso em seguida que, assim como os pets, abandonamos também filhos e filhas, pais e mães, netos e netas, sobrinhos e sobrinhas, maridos e mulheres à própria sorte pelas ruas. Basta ver a quantidade de pessoas que perambulam em condições sub-humanas pelas calçadas, vivendo um dia de cada vez, a implorar por um trocado ou por alguma comida. Fazemos isso com os indefesos – cães ou drogados, gatos ou desempregados, cacatuas ou idosos, cabras ou solitários – sem remorso, sem culpa, sem dó.
As pessoas no ponto logo esqueceram o cão sem dono e emendaram outros assuntos. Um disse que jogaria no cachorro. Alguém anotou a placa? Esse ônibus sempre atrasa. Essa novela tá muito chata. Tá mesmo! Minha patroa vai me dar outra bronca. Eu deveria ter ido de metrô, mas é tão cheio essa hora… Aqui tem algum que vai pro Centro?
Todos fomos em frente, seguimos com a vida, como fiz quando embarquei na condução que enfim chegou, lotada. Agarrado ao balaústre, espremido entre os trabalhadores que iam ganhar o pão daquele dia, segui na mesma direção em que correu desesperado o cachorro.
Eu fui de ônibus.


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