Você já deve ter dito ou ouvido alguém dizer que “Chegar até aqui foi uma verdadeira odisseia”. Não? Talvez um parente tenha confessado que, na hora da dieta, seu calcanhar de Aquiles é o chocolate. Nunca ninguém chamou, na sua frente, o rapaz namorador de “um tremendo Don Juan”, ou disse que “aquela colega de trabalho é “um lobo em pele de cordeiro”, ou se referiu à moça, que teve a vida transformada para melhor, de uma hora pra outra, como “uma verdadeira Cinderela”?
Talvez você tenha desejado, num momento de cansaço do mundo, mudar-se para Sangrilá ou para Macondo. Aposto que, em algum momento, deve ter usado algo como “não é possível agradar a gregos e troianos”; ou percebeu, desapontada, que o que parecia, a princípio, um benefício era, na verdade, um tremendo “presente de grego Pode até nem ter proferido essas sentenças assim, desse jeito sacralizado, com todas as letras; quem sabe não as disse da sua maneira, adaptando-as pra nossa boa e prestimosa língua de todo dia?
Todas essas expressões pertencem a obras literárias clássicas ou fazem alusão a personagens ou passagens marcantes delas. Assim como “Ser ou não ser?”, “Big brother”, “cena dantesca”, “luta quixotesca”. As referências que usamos sem pensar são uma prova de que tais livros estarão para sempre entre nós, usadas como bengala semântica até por quem não os leu.
Mas o que faz um livro durar tanto, varar as eras, pular o muro do tempo e ser capaz de falar com gente como nós, tão diferente e distante? Ou, por que a gente, desta parte da civilização, aqui do alto do século XXI, ainda se interessa pela história, pelos personagens ou por passagens de um livro que foi escrito lá embaixo, há décadas ou séculos? O que ele tem a nos dizer que nos toca? Por quê?
Eis o mistério das obras consideradas clássicas: o que as faz perenes, vivas, imortais? Será que é porque seus personagens, apesar de heroicos ou divinos, mortais ou imortais, nobres ou camponeses, pobres ou ricos, tiranos ou oprimidos, são ciumentos, vacilantes, teimosos, indecisos, apaixonados, frívolos, angustiados e frágeis como nós?
Em algum momento da vida eu fiz como o herói grego, ao ser contrariado, e cruzei os braços, de birra, enquanto, à minha volta, o circo pegava fogo, até que viessem me dar razão e/ou me pedir desculpas. Já sofri de ciúmes, a vasculhar na memória os passos e os possíveis deslizes das minhas oblíquas capitus. Vacilei entre ser ou não ser isso ou aquilo e percebi, estarrecido, mais de uma vez, que há mais mistérios entre o céu e a terra do que sequer sonhara a minha vã filosofia.
Sim, acho que é por isto: somos ciumentos como Bentinho, birrentos como Aquiles, vacilantes como Hamlet, assombrados como Riobaldo, frágeis como Macabéa, visionários como Buendía, niilistas como Brás Cubas, cínicos como um Karamázov… Seguimos na vida cometendo, diariamente, pequenos delitos, pelos quais somos castigados, no instante seguinte ou décadas depois, e cumprimos resignados nossa pena de séculos de solidão. Suas angústias permanecem conosco, apesar do abismo cronológico entre nós.
Os livros clássicos, acho, são eternos porque nos dizem o que precisamos ouvir; agora e sempre, enquanto formos humanos. Há quem se guie por outros livros, a buscar neles ensinamentos e inspiração. Eu prefiro abrir as páginas dessas obras imortais, qualquer que seja ela, aleatoriamente, como quem se automedica e busca no armário do banheiro um remédio sem receita e sem sequer ler a bula, para aquele mal que a gente sabe ser crônico, mas que se manifesta de vez em quando, só para nos lembrar dele. Volto a eles porque neles estão algumas das respostas que busco neste mundo de meu Deus, e porque neles vejo nos personagens, como numa lupa ou com num espelho, aos meus e a mim.

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