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DOMINGO DE SOL

Na rua sonolenta, poucos personagens dão as caras. Com o sol ainda se espreguiçando, de olhos meio fechados, a moça trabalhadora, arrasta seu corpanzil pela calçada de pedras portuguesas, mochila às costas, ar cansado da noite mal dormida. O jovem descabelado e blusa amarfanhada que passeia com o cão nem presta atenção ao que o bicho faz, tão distraído está com seu smartphone. Um homem em situação de rua levanta e recolhe contrariado seus farrapos e papelões, porque a banca de jornais sob cuja marquise ele se abrigara para dormir acaba de levantar ruidosamente suas portas de ferro.

Um velho, da idade do mundo, perde novamente o sinal aberto para os pedestres e se resigna a esperar que a porcaria fique verde de novo, quando então tentará, pela terceira vez, atravessar a rua larga e movimentada. O flamenguista passa dizendo algo para o segurança, que responde com um gesto obsceno, sem nem olhar para o provocador, enquanto uma barata entra correndo de volta no bueiro, depois de seu passeio noturno pelo mundo dos humanos.

O dia nasce nas entranhas de Copacabana. No palco principal, a praia, tudo está sendo preparado para mais um dia espetacular. Teremos de novo areia coalhada de guarda-sóis coloridos, um mundo de gente, nativos e turistas, vendedores, corredores e crianças. Os corpos desnudos exibem-se sem constrangimento em várias posições. Policiais, ladrões e as possíveis vítimas estão em seus lugares, prontos para o embate no intrincado xadrez social que é jogado. Ao fundo, músicas embaralhadas travam uma guerra de decibéis e fazem a trilha sonora do ambiente, diverso que ele só.

Na coxia, os artífices da festa vão tomando suas posições estratégicas para que tudo funcione enquanto o sol estiver lá no alto, colorindo tudo e todos. O salva-vidas espalha filtro solar na careca reluzente, para aguentar os raios solares na moleira durante o dia inteiro. Vendedores ambulantes atravessam a rua abarrotados de quinquilharias, cobertos da cabeça aos pés, como beduínos no Saara. Triciclos empenados pelo peso do gelo e da bebida abastecem os quiosques, e um carro de polícia militar estaciona sobre a calçada, numa posição estratégica de observação das ocorrências.

A praia atrai e recebe seus adoradores, que chegam de todas as partes, em bandos, hordas famintas de sol, de sal e de diversão. A areia branca vai aos poucos desaparecendo embaixo de cangas, tendas e cadeiras reclináveis. Lá fora, o mar aguarda os banhistas, doido para chicotear com espuma e areia os que só querem se molhar até os joelhos e, quem sabe, engolir, de brinde, um mais afoito ou desavisado, antes que os estraga-prazeres dos bombeiros entrem na água para resgatá-lo, a muito custo, de sua goela voraz.

O domingo começa como muitos outros e terminará como quase todos. No fim do dia, haverá os afogados de sempre, as crianças perdidas, os pais desesperados a procurá-los em vão no meio da multidão que bate em retirada; os que ficaram sem brincos, pulseiras, cordões, relógios ou celulares, levados pelo mar ou pelos invisíveis gatunos. Alguns desses serão pegos pelos policiais, e entre eles estarão inocentes, misturados aos réus confessos, pela miopia social que acomete os agentes de segurança. Haverá quem tenha encontrado o amor de sua vida e quem quase o perdeu, por uma bobagem.

No lusco-fusco da tarde, verei baterem em retirada, numa procissão de desesperançados, os policiais com sua meta semanal de meliantes atingida, os fiéis, esgotados de sol, de sal e de cerveja, a arrastarem contrariados as bolsas e sacolas, agora vazias, que, horas antes, carregavam animados na direção da praia. Os vendedores também deixarão o palco às escuras, a areia de novo à mostra, o barulho das ondas ao fundo, a brisa fresca seduzindo os namorados a ficarem só mais um pouquinho, agora mais à vontade.

O sol sairá de cena, discretamente, atrás da montanha, como veio, sem pedir aplausos. Seu rastro de luz sobre o mar se estenderá ainda por alguns segundos, até desaparecer completamente, atrás do Forte, puxando em seu lugar a escuridão da noite. O breu que entorna sobre todos prenuncia a segunda-feira, e mais um domingo esplendoroso terminará em Copacabana.


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Criada em 2020 pelo professor e poeta Renato Cardoso, a Revista Entre Poetas & Poesias é um periódico digital dedicado à valorização da literatura e da arte em suas múltiplas expressões. Mais que uma revista, é um espaço de conexão entre leitores e autores, entre a sensibilidade poética e a reflexão cotidiana.

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