Um bar é um dos melhores lugares para recolher material para uma crônica. Além, é claro, de afogar a angústia ou celebrar a alegria. Neste caso, foi angústia.
O dia para mim tinha sido difícil, duro, pesado. Daqueles dias que a morte vem nos jogar na cara o pouco ou quase nada que somos. Em menos de 24 horas eu tinha visto como a vida passa o bastão para a morte em todo o seu passo a passo: corpo inerte, IML, velório, choro, despedida, tristeza, sepultamento, solidão, fim. É uma daquelas oportunidades que o ser humano tem para fazer uma autoavaliação e analisar qual o seu papel neste mundo e quão frágil ele é.
Pois bem, após seguir todo esse ritual, resolvi parar em um bar de um amigo para afogar a energia negativa que carregava desde a noite anterior. Puxei uma cadeira, me sentei e pedi uma cerveja. Comecei a conversar com o dono do bar e outra pessoa que estava lá. O mínimo do assunto foi comentado e desviei a conversa. Eu queria relaxar. Entre um gole e outro a conversa mudou de rumo, tornou-se mais leve, descontraída, exatamente como eu queria.
Ainda não tinha terminado a primeira cerveja quando chegou um senhor de aproximadamente setenta anos, vestindo uma camisa de um time estrangeiro, uma bermuda jeans e um boné. Nas mãos, trazia uma espécie de cajado, no qual se apoiava levemente, e uma coleira azul de cachorro. Pôs-se em pé à nossa frente e começou a cantar uma música de Ataulfo Alves, daqueles sambas saudosos que nos arranca da correria frenética do presente e nos leva à vida sem pressa de um passado distante.
Perguntou meu nome. Respondi. Falou o dele. Indagou que nota eu lhe dava pela música. Dei a nota máxima, é claro, pois sabia que era o que ele queria ouvir. Deu uma pausa na fala e suspirou profundamente – um profundo de lamento.
– Tô tão magoado. O Fortaleza perdeu pro Ceará… Também, desde que aquele goleiro saiu do Ceará e veio pro Fortaleza, que o Tricolor perde direto pro Ceará – lamentou.
Perguntou se podia cantar outra música. Ao iniciar, parou para me perguntar se eu conhecia. Cantei um trecho da música. Ele ficou feliz e continuou. Ao terminar, se dirigiu ao dono do bar e falou:
– Seu Barriga Cheia, me traga um copo de vinho. Tô muito triste. Fui fazer uma caminhada com meu cachorrinho, uns cachorros correram atrás dele e o bichinho se perdeu de mim. Me traga um copo de vinho.
Bebeu como se bebe água. Falou que gostava de caminhar. Andava pelo Açude do Mato, pelo Serrote do Muniz, Cabaceira. Gostava tanto, que no dia seguinte, pela manhã, pretendia fazer uma caminhada até a Amanaiara, que está em festejos de São José.
– Qual o seu nome? – perguntou de novo. – Sou muito esquecido, me desculpe.
Respondi-lhe e disse que perguntasse quantas vezes quisesse. Enquanto durou os três copos de vinho – não bebeu mais porque não tinha – perguntou meu nome diversas vezes.
– Você sabe que eu sei imitar um galo? E um jumento?
Respondi que sim, e lhe disse que o tinha visto imitando os animais em uma tarde de futebol no estádio.
– Seu Barriga Cheia, me traga mais um copo de vinho.
E passou a desfiar a vivência de seus longos quarenta anos que tinha morado em Fortaleza. Havia voltado fazia poucos anos. Imitou o galo e o jumento mais uma vez e perguntou se podia cantar outra música. Confirmei. Ele cantou “A Professorinha”, de Ataulfo Alves, o hino do Ceará e iniciou o do Fortaleza, mas parou, triste com a derrota.
– Seu Barriga Cheia, me traga mais um copo de vinho.
Não tinha mais. Ficou triste. Lembrou-se do cachorro que havia se perdido e do placar do jogo.
– Qual é mesmo o seu nome? Me desculpe, eu sou esquecido. Você sabia que sou o galo de Reriutaba?
Cantou outra música e pediu mais um copo de vinho.
– Acabou. Não vendo vinho. Este que tinha aí, é que ganhei de brinde – respondeu o dono do bar.
–Ah, é mesmo. Você tinha falado. É que sou esquecido.
Pagou o que bebeu. Na verdade foi quase uma cortesia do dono do bar.
– Vô me embora. Tô muito magoado. O Fortaleza perdeu pro Ceará. Culpa do goleiro. Num gosto quando o Fortaleza perde. Sofro muito.
Despediu-se e saiu apoiado levemente em seu cajado.
Pedi a saideira e paguei a conta, pois estava cansado. O Galo de Reriutaba tinha ido para seu poleiro solitário. Eu, que já estava com minhas pernas doendo, precisava tomar um banho e dormir, e quem sabe esquecer por uma noite o quanto é tênue a linha que separa a vida da morte, assim como a derrota e a vitória. E que uma necessita da outra para continuar a jornada, assim como o Galo de Reriutaba e seu cajado, que, provavelmente iria ter pesadelos com o placar do jogo.
Nada melhor pra relaxar do que prosa de bar.


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