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POR UM TRIZ

O sinal abriu para os pedestres e eu, ato contínuo, pus o pé no asfalto, para começar a travessia quando, do nada, um bólido passa a milímetros de mim, vindo no sentido contrário ao dos carros parados no sinal. Era um entregador numa bicicleta enorme, que continuou sua jornada, avenida adentro, impávido e veloz, na contramão, entretido com a música que ouvia no seu fone de ouvido.

Esse quase atropelamento me levou a refletir sobre as inúmeras vezes em que estive prestes a sofrer um acidente do qual escapei por uma fração de segundo, por milímetros. Mas já me dei conta de que o negócio não é só comigo, não. De vez em quando recebo vídeos de pessoas – você também já deve ter visto – que escaparam sem graves consequências de quedas, batidas, desmoronamentos, explosões apenas porque estavam um tantinho pra cá ou pra lá, um minuto antes ou depois, na hora da tragédia. Por outro lado, fico sabendo de gente que foi para o beleléu porque estava passando, tranquila e miseravelmente pelo lugar errado, no segundo errado.

O certo é que, nessa confusão do Rio de Janeiro e, de resto, de todas as grandes cidades do Brasil, o dia só não termina com milhares de mortos, vítimas dos mais diversos acidentes, por intervenção divina. Só pode ser, porque tudo aqui é feito pra dar muito errado. “Tudo agora mesmo pode estar por um segundo”, já cantou o imenso Gilberto Gil. Se você olhar à sua volta, neste momento, agora mesmo, aí pertinho de você, uma gravíssima colisão entre um ônibus e um carro de passeio não aconteceu por um milagre. Aquele velhinho ali não ficou debaixo do carro que avançou o sinal, sabe lá Deus como. Foi por muito pouco que a lata de refrigerante que alguém jogou da janela de um veículo em movimento não acertou ninguém na calçada. E a criancinha escapou de despencar no trilho do trem e ser esmagada pelo comboio porque, ao se soltar da mão da avó e correr inocentemente pela precária plataforma, tropeçou e caiu a centímetros do vão.

Presta atenção! Já reparou na quantidade de buracos nas calçadas da cidade, prontos para nos tragarem na covardia, enquanto caminhamos distraídos olhando o celular ou ouvindo um podcast? Na iluminação precária de muitas de nossas ruas que potencializa as quedas e a ação de criminosos? Nos postes que estão, sem trocadilho, por um fio de desabar sobre os carros ou sobre os pedestres? Nas pontes e nos viadutos em péssimo estado de conservação? Nos irascíveis cachorros que passeiam sem coleira e sem focinheira? Nas pessoas que fumam e jogam suas guimbas pelas janelas dos carros, sem nem sequer se importarem onde ou em quem cairão?

Por certo, você já se deu conta da quantidade de sinais de trânsito com defeito, da péssima sinalização de nossas vias e avenidas, da falta de educação de motoristas, motociclistas, transeuntes, ciclistas, skatistas e afins, dos elevadores dos grandes prédios, que sobem e descem superlotados, desafiando a física e o perigo.  Dos aparelhos de ar condicionado que balançam perigosamente nos prédios, sobre nossas cabeças. Já viu os ônibus superlotados que partem mesmo com alguns passageiros pendurados nas portas? Os banhistas que insistem em entrar no mar de ressaca, apesar de todos os avisos dos bombeiros? O emaranhado de ligações clandestinas de energia elétrica, com fiação exposta e prestes a entrar em curto?

Nem citarei os tiroteios entre bandidos e policiais, a qualquer hora do dia ou da noite, que nos colocam, de repente, no meio do fogo cruzado; dos que soltam fogos de artifício sem ligar para quem está ao lado ou embaixo; dos que fazem obras em edifícios, arrancando paredes, sem consultar um especialista; dos que expõem dezenas ao risco de morte por uma ação inconsequente e irresponsável como beber e dirigir ou por conduzir o veículo numa velocidade muito acima da que é permitida e recomendada.

Viver numa grande cidade é uma aventura sem fim porque, parece, seguimos o lema “Cada um por si!” Obviamente não tinha como dar certo juntar tanta gente no mesmo lugar. Mas poderíamos ser um pouco melhores na convivência diária. Não somos porque nos faltam gentileza e empatia. O que custa esperar todas as pessoas atravessarem para sair com o carro ou a moto? Que diferença farão na vida desses ansiosos e apressadinhos os dois ou três segundos a mais no sinal de trânsito? Por que não ceder passagem, a vez, o lugar para alguém que precise? Que corrida maluca é essa em que não há prêmios para quem chega em primeiro a não ser a satisfação doentia de ter “deixado pra trás aqueles babacas”?

Nós vivemos assim por um triz, todos os dias correndo o risco de sermos atingidos por algo que caia do céu, por uma bala perdida, por um veículo de duas, quatro ou doze rodas porque perdemos, todos, o mínimo necessário para viver em sociedade: o respeito ao próximo, de quem queremos, mesmo, é distância. Esquecemos a civilidade, perdemos a paciência e nos atiramos, selvagens, numa batalha inglória pelo assento na condução lotada, por um lugarzinho a mais no elevador, para atravessar a rua no último milésimo de segundo antes que o sinal abra, pela vez na fila, pela pole position no sinal de trânsito, para sermos atendidos primeiro nos balcões da vida.

Perdemos desgraçadamente a humanidade e isso nos expõe ao perigo iminente todos os dias, levando juntos conosco nessa arriscadíssima aventura que é viver numa grande cidade os que estão inocentemente à nossa volta.  Corremos para chegar a lugar nenhum. Na loucura do dia a dia, deixamos de nos ver, de nos ouvir, de nos perceber, atropelando-nos uns aos outros. Os que, como eu, escaparam da selvageria urbana por um triz seguem a vida, agradecendo aos céus por ter desviado a bala, o reboco, o tijolo, a bike, o cão ou o carro, pedindo, encarecidamente, que o anjo da guarda não saia de férias ou não durma no ponto enquanto estamos na arena cotidiana da luta pela vida.


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Uma resposta para “POR UM TRIZ”.

  1. Avatar de JORGE LUIZ MORAES BARBOSA
    JORGE LUIZ MORAES BARBOSA

    Não sei por que o espanto. Não foi você quem escreveu aquele samba Eu sou do Rio, sou da Zona Norte / Sou do Subúrbio da Central / Desde menino, desafio a sorte / E dou a volta em todo mal? O Rio de Janeiro é para quem gosta de viver perigosamente, meu querido.

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Criada em 2020 pelo professor e poeta Renato Cardoso, a Revista Entre Poetas & Poesias é um periódico digital dedicado à valorização da literatura e da arte em suas múltiplas expressões. Mais que uma revista, é um espaço de conexão entre leitores e autores, entre a sensibilidade poética e a reflexão cotidiana.

Registrada sob o ISSN 2764-2402, a revista é totalmente eletrônica e acessível, com publicações regulares que abrangem poesia escrita e falada, crônicas, ensaios, entrevistas, ilustrações e outras formas de expressão artística. Seu objetivo é tornar a arte acessível, difundindo-a por todo o Brasil e além de suas fronteiras.

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