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Projeto 16 horas – Edição: Fev.25 – Texto: “Tios do Zap” – Claudia Rato

Tios do Zap

Bons tempos aqueles das cadeiras de praia no bairro urbano, de fronte para a rua coberta de paralelepípedos, onde as conversas fluíam na maior simplicidade, e a discordância se dissolvia no olhar em prol da política boa da vizinhança. E ponto. Tudo seguia como se nada houvesse acontecido.

Mas a vida urge. As pedras, uma a uma, dão lugar às vias de ébano. As cadeiras perdem forma, e as palavras fraseadas tomam o peso de uma nova era. A roda de prosa ganha novo endereço, com espaço para muito mais assentos, agora transformados em números, vividos dentro de um trocinho pequeno, que cabe na palma da nossa mão.

A família toda agora faz parte dessa vasta calçada, dos mais chegados aos agregados – os amigos, idem. Vizinhos e colegas de trabalho parecem ter nascido lado a lado, de tão próximos. Cada meio quarteirão resolveu criar seu próprio nicho. E lá estão todos a jogar conversas fora, afirmar suas convicções e a retrucar também.

Começa um assunto, vários “bons dias”, figuras com expressões felizes e vídeos com mensagens compartilhadas de grupos alheios – sequer checadas por quem as enviou. Eis que surgem os famigerados “tios do Zap”, especialistas em teorias conspiratórias, boas intenções e notícias duvidosas. Ao lado deles, as “tias das correntes”, que fazem questão de espalhar bênçãos e desafios religiosos, que mais parecem uma ameaça caso não os aceitem. Um velho amigo de todos também entra, cheio de razão daquilo que nem sabe do que se trata.

Do nada, “brota” um novo tema, um assunto, uma pauta, uma provocaçãozinha, uma pseudonotícia, um comentário mal interpretado, ou não muito bem colocado, para fazer desse metro quadrado digital um cenário de conflito.

A dona Maria, coitadinha, que só queria dar um “boa tarde”, toma de susto ao ver mais de duzentas mensagens nas mais variadas oscilações de fervor. Parece que as pedras daquela rua de outrora transformaram-se em pedregulhos lá atirados.

Xinga daqui, de lá, ironias, grosserias, roupas bem sujas são lavadas e endossadas por alguns membros daquele até então tranquilo grupo da família, do prédio, do trabalho.

Inicia-se uma discussão sem fim. Alguns querem plateia – gostam de plateia. Jamais debateriam naquela pacata rua de bom papo. Há aquele que se manifesta só pra marcar território ou passar por bom moço, na cega cumplicidade de quem vê tudo com os bons olhos que a terra, quiçá, há de comer. O endosso vem com um aplauso travestido em imagem de palminhas, corações ou até mesmo a de uma gargalhada, que muitas vezes não tem a menor graça. 

Começa a terceira guerra mundial de cada dia. Terra de ninguém. Entram os que jamais seriam capazes de falar algo a alguém fora de uma tela de celular e que se acovardam diante da blindagem. Numa conversa individual o tom seria outro, ah, seria. Num papo ao telefone, então, mais ameno ainda. Se chamar para conversar no tal “pv”, aí acaba a graça – não vai ter ninguém pra ver. E falar pessoalmente, tête-à-tête, olho no olho, no fio do bigode? Certamente, a discussão passaria longe.

A confusão perde controle. Seu José, administrador da bagunça toda, precisa intervir. Pronto, fechou o circo. O espetáculo acabou. Tirano para alguns, salvador da pátria para outros. Pausa para um novo recomeço. 

Dia seguinte, novos bons dias, novas encenações e novos membros.

_ Bem-vinda, vizinha Gertrudes. Atente-se às regras do grupo. 

Mensagens de ‘bom dia’ pipocam, feito grãos na panela. Carinhas sorridentes e frases já conhecidas dão o ar da graça.

_ Pessoal, repassem esse vídeo, olha o que esse governador quer colocar nas escolas.

_ Isso é fake, seu otário, apaga essa merda.

_ Não é mentira, minha irmã recebeu no outro grupo.

_ Lá vem o cantador de hino pra pneu, terraplanista dos infernos.

_ Lá vem a esquerdalha.

_ Aff…

Em meio à discussão, alguém só quer uma informação.

_ Saberiam dizer por que até agora o lixeiro não retirou meu lixo?

_ Não é lixeiro que se fala, você tem que ter mais educação.

Manifestações a todo vapor, de todas as tribos, em suas mais variadas formas.

_ Por falar em lixo, quem foi o porco que deixou um saco no corredor?

_ Fui eu, estou operada, não posso levar até a lixeira, avisei o síndico.

_ Não pode, mas tomar umas no boteco à noite pode?

_ VTNC.

_ Vai você, sua gorda.

_ Acabei de printar isso. Vou te processar.

_ %$¨(Y&

_ &%Rr#@¨

_ Gente, que confusão é essa? Noventa e sete mensagens aqui, dá pra brigar no privado?

_ Grupo fechado até amanhã (administrador).

E, assim, o ciclo se repete, dia após dia, nesse novo mundo, onde o bom senso, há tempos, parece ter ficado guardado lá atrás, naquela pacata rua de calçadas largas que não volta mais, de quando os olhares resolviam, as palavras se poupavam e a vida fluía com a simplicidade de quem sabia que o silêncio, muitas vezes, era a melhor resposta.

(Crônica de Claudia Rato – Jornalista e escritora)


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