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Projeto 16 horas – Texto – “Sete anos, onze meses e vinte e oito dias de escrita” – Oswaldo Eurico Rodrigues

Mosteiro de São Bento, Rio de Janeiro, 22 de janeiro de 2017

Não ouvi o despertador. Ou o ouvi e não sei que ouvi. Será que acordei automaticamente internalizando o som do galo sintetizado no celular? Pouco tempo depois do programado despertar, já havia começado minhas divagações matinais solitárias. Quando pensei em me levantar, ouvi o toque surdo em madeira. Alguém chamou à janela. Levantamo-nos. Felizmente não era bandido.
Ainda com vontade de ficar na cama, vesti-me. Engoli um suco de fruta e partimos ao Rio para conduzir familiares a prestar concurso público.
Visitar a Cidade de Machado de Assis, para mim, é sempre tão enriquecedor quanto ler os contos do Bruxo do Cosme Velho. Ousadamente, voltei a escrever a mão como nos tempos de menino. Com um humor mais ácido de quem está no processo de amadurecimento. Conforme o tempo passa, vamos ficando corrosivos. Felizmente, tenho boa tolerância à acidez quando vem de mim. Difícil está sendo lidar com a minha crocância. Os ossos estalam como torrone, mas eu, com pé-de-moleque, saio “croc-croc” por aí com ambas as pernas valendo por duplo saci. Papel é uma delícia por isso. Viro duende negro de bambuzal brasileiro. Daqui a pouco, comerei strudel em Adis Abeba, tomarei água de coco em Helsinque, meditarei na Times Square. Papel aceita tudo. Até meus rabiscos e riscos fincados no branco das folhas, em cantos e desencantos da malha.
Encontrei esses três parágrafos acima num caderno velho quando estávamos arrumando armários naquela faxina anual onde lançamos fora objetos interessantíssimos, caríssimos e duma raridade singular como se fosse mera embalagem de supermercado. Os objetos têm importância para nós num dado momento. Depois não temos mais como acumular tanta preciosidade. Não somos museus. Não temos reserva técnica e nem condições de expor tamanho acervo. Para falar a verdade, mesmo se quiséssemos expor nossas relíquias, haveria público interessado em admirar ou pesquisar nossas peças? Você já percebeu qual a minha resposta. Joguei quase tudo fora. Porém não subi no campanário de nenhuma igreja e espalhei minhas palavras. Elas não são plumas ao vento. Retirei as páginas interessantes dos velhos cadernos. Eram anotações de alguém a preencher o tempo quando está ansioso, zangado, triste, admirado, alegre e não quer ou não pode compartilhar com os outros as suas percepções.
Sinceramente, não sei por que comecei a escrever num caderno velho no pátio do Mosteiro de São Bento. Tentando recobrar minha memória, acredito ter começado as anotações sentado num banco no pátio da Igreja de Nossa Senhora de Monte Serrat (mais conhecida como Igreja do Mosteiro de São Bento). Esperava minha esposa falar com alguém ao telefone, enquanto isso, escrevia. Ou talvez, ela tenha saído para retocar a maquiagem? Não foi isso. Ela não usa maquiagem. Melhor construir a memória com a imagem dela falando ao celular com uma amiga desconhecida para mim. A sua empolgação foi de tal modo colossal que ela esqueceu de mim. Por algum motivo resolvi começar falando sobre o meu dia. Sou assim. Gosto de crônicas. Gosto de ensaios também. Para falar a verdade, naquele dia, fui apenas companhia para alguém que prestava concurso público. Enquanto a prova era aplicada, eu passeava pelo Centro da Cidade Maravilhosa. Porém, estar no Rio de Janeiro, mesmo pela bilionésima vez é algo incrível. Parece que chego à antiga capital do Brasil sempre como se fosse a primeira vez. Qualquer detalhe é pretexto para encantamento a despeito de todos os problemas enfrentados pela metrópole fluminense. Comecei a escrever, mas parei. A conversa ao celular terminou e saímos do Morro de São Bento a flanar pela cidade como diria João do Rio.
O texto foi para a gaveta. Ficou hibernando (ou em coma). Prefiro dizer que ficou soterrado sob camadas de esquecimento. Numa arrumação com cara de reforma, apareceram vestígios do passado. O arqueólogo foi chamado e agora tenta reconstituir o documento inacabado. Levantando hipóteses sobre a escrita do autor, acredita-se que iria falar sobre o seu processo criativo (como está fazendo agora) ou estaria contrariado com algo e resolveu dar um surto de liberdade dizendo que tudo é possível a quem escreve, pois o papel aceita tudo. Provavelmente algo desagradável aconteceu. Daí falar sobre a tolerância a acidez de si mesmo. Talvez estivesse querendo dar um recado a alguém (talvez à própria esposa). O tempo, felizmente, soterrou a suposta raiva debaixo dos anos avançados. Há quase oito anos comecei a escrever. Ontem retomei o processo e hoje, véspera de aniversário da escrita, estou acrescentando remendos à crônica resgatada. Amanhã, os oito anos estarão completos.
Se você conseguir dar um outro final para esse conjunto de palavras publicado às vinte horas e trinta minutos do dia 21 de janeiro de 2025, fique à vontade. Trabalhei sozinho na arqueologia de mim mesmo. Quem sabe você não consegue trazer à tona o que se perdeu na imensidão do subconsciente dum autor?

Na minha residência (entre pinturas e livros), Itaboraí – RJ, 21 de janeiro de 2025.


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Criada em 2020 pelo professor e poeta Renato Cardoso, a Revista Entre Poetas & Poesias é um periódico digital dedicado à valorização da literatura e da arte em suas múltiplas expressões. Mais que uma revista, é um espaço de conexão entre leitores e autores, entre a sensibilidade poética e a reflexão cotidiana.

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