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VELHICE

Sou informado da minha velhice pelos outros. Tem sempre alguém que me a denuncia, na lata, inesperadamente. No metrô, outro dia, um homem, de, sei lá, uns quarenta anos, ofereceu-me o lugar para que eu sentasse. Recusei ofendido. Quem ele pensa que é? Tô muito bem aqui de pé, tentando ouvir um podcast, às voltas com a conexão bluetooth do celular. Uma senhora, sim, uma senhora, no supermercado, me fez um psiu e me chamou para ficar atrás dela na fila. Fiz cara de desentendido, e ela apontou a placa insofismável: “Idosos, gestantes, deficientes…” Permaneci onde estava, para protesto dos que esperavam atrás de mim, os normais, sem nenhum tipo de necessidade especial, que torciam pela minha ida para a fila dos claudicantes para que restasse menos um à frente.

No espelho, quando me olho de relance, ao escovar os dentes (sim, ainda os tenho), pentear os cabelos (os que restaram), lavar o rosto (…), reconheço o mesmo jovem cheio de sonhos que sempre fui e que serei até a morte. Ainda estou escrevendo aquele romance interminável, continuo compondo canções aos borbotões e, a meu juízo, cada vez melhores, comprando livros e me enchendo ainda mais de culpa porque sei que entrarão no longo rol dos que ainda não li e que tenho de ler antes de morrer.

A minha tal mocidade latente se expressa nas atitudes juvenis que ínsito em tomar. Planejo com detalhes viagens longas e impagáveis por lugares inóspitos aos quais ninguém me acompanharia. Revejo filmes antigos com descabida curiosidade, quando os flagro na Tv, nas madrugadas insones e sem inspiração. Às vezes, me pego fazendo planos para daqui a dez anos, e um anjo safado, sobre meu ombro direito, me sussurra com seu bafo etéreo: “Vais estar aqui daqui a dez anos?”  Refaço os planos na crença de que a criatura, por ter conchavo com o além, deve ter informações de cocheira sobre o meu destino.

Talvez você, leitora, que se encaixe nessa categoria a que me recuso a pertencer – a dos idosos –  esteja se perguntando: esse cara não sente dores, não tem doenças crônicas, males diversos, comuns à decrepitude? Querida, as dores e os males que tenho já me acompanham de há muito. Não surgiram com o tempo, só pioraram com o passar dos anos; por isso, não são para mim sinais da velhice, mas do descuido que sempre tive comigo, por não acreditar que chegaria à idade que ostento sem orgulho hoje.

“Quem não morre envelhece”, disse com sabedoria Dona Canô, mãe de Caetano e Bethânia. E quem envelhece dissolve a morte. Diferentemente do enfarte fulminante, do inclemente desastre, da maldita doença que nos arrancam de vez em quando um ou uma de nós na flor da idade, a velhice é uma morte preparada em capítulos. Primeiro, vão-se os parentes ascendentes, depois os amigos, mais ou menos por aí, vão-se os cabelos, já tronados brancos, e os irmãos, um vizinho, uma ex-colega do trabalho. Cada um que se retira leva embora, pra coxia eterna, como no teatro moderno, elementos do cenário, sem os quais a vida para quem fica vai perdendo referência. Ali não ficava a casa do Bolota? Essa rua era mais larga. Cadê o campo em que eu jogava futebol aos domingos?

Na nova cena, a trilha sonora que ouço no sistema de som passa a ser outra, incompreensível para mim, e a gente, que ficou além do tempo em cena, vai-se sentindo cada vez mais fora de propósito, como figurantes sem importância numa peça que não compreendemos e da qual não deveríamos fazer parte. Passamos, como os personagens de Pirandello, a procurar o autor para lhe pedir explicações sobre o nosso fim na trama insossa em que estamos como extras numa grande produção hollywoodiana dos anos quarenta do século passado.

Como me recuso a ser apenas elemento cênico nessa novela longuíssima e enfadonha, tento o estrelato de vez em quando, saindo da posição subalterna de figurante para ser solista por meio de uma canção, de uma crônica, de uma aula, em que eu mesmo me dou voz, já que o roteirista divino já não me dá falas ou papéis relevantes.

É por isso que escrevo.


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Criada em 2020 pelo professor e poeta Renato Cardoso, a Revista Entre Poetas & Poesias é um periódico digital dedicado à valorização da literatura e da arte em suas múltiplas expressões. Mais que uma revista, é um espaço de conexão entre leitores e autores, entre a sensibilidade poética e a reflexão cotidiana.

Registrada sob o ISSN 2764-2402, a revista é totalmente eletrônica e acessível, com publicações regulares que abrangem poesia escrita e falada, crônicas, ensaios, entrevistas, ilustrações e outras formas de expressão artística. Seu objetivo é tornar a arte acessível, difundindo-a por todo o Brasil e além de suas fronteiras.

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