Carina Lessa

“A arte salva”

 

Hoje, a Dilma é minha voz. Não falo no sentido político-partidário. São muitas as vozes escondidas pela História. Convoco-a pelos últimos acontecimentos. Falo da mineira que, em 2012, teria todos os motivos para comemorar o sucesso do primeiro mandato. Naquele ano, ela é exaltada como uma das mulheres mais poderosas do mundo. Vivia, aparentemente, o seu melhor momento. Na democracia, diante da liberdade de expressão, se escreve a verdade. Ouvimos o outro e escrevemos a história. Assim Dilma era lida. Alguns anos depois, não sem certa razão, ela seria vista como ingênua, ao deixar que se apropriassem de seus discursos e imagens para capitanear a ditadura no país.

Na democracia não há torturadores que, como ela mesmo diz, nos dão o orgulho de mentir. Temos a coragem, a dignidade de construir uma mentira. Sabemos disso. Reproduzo as palavras da presidenta: “Qualquer pessoa que ousar falar qualquer coisa para interrogadores compromete a vida dos seus iguais, entrega pessoas para serem mortas. Eu me orgulho muito de mentir na tortura”. Interessante é saber que o grito, que ecoa do passado dessa mulher corajosa, surge somente em 2016, quando começa então a circular o vídeo em que ela faz a declaração acima. O grito que falava mais da democracia em jogo, na medida em que homens já a chamavam de vadia e a matavam simbolicamente.

Aquela mulher, que via suas palavras reproduzidas em 2012, mesmo que não houvesse um pacto aberto e sincero, mantinha a dignidade da democracia. De fato, não percebia as tramas da violência simbólica já a aplaudindo. Não enxergava. Era a ingênua “dedicada, muito disciplinada no que fazia, muito diligente e entregue à luta. Ela se aplicava muito nas tarefas”, como afirmou Nahas, amigo de Dilma nos tempos de UFMG. Em 2016, o grito de destituição revela, lamentavelmente, o assassinato simbólico da estudante. Revela-se por que não se é capaz de enxergar o outro como a si mesmo.

Não quero ser longa. Visto este corpo como atitude política de quem enxerga verdadeiramente o ser humano, independente dos interesses pessoais ou partidários. O meu grito também pode ser o do estudante negro morto com um tiro. O estudante negro morre por não corresponder à democracia que forjamos todos os dias.

Aquela jovem livre, que Dilma parecia carregar em 2012, nos parece agora uma triste ilusão. Um jogo de espelhos para convocar falsos profetas.

 

Mostrar mais

Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

Artigos relacionados

Botão Voltar ao topo