Carina Lessa

O sinal parou

 

O sinal parou. Na faixa de pedestres, a engolidora de espadas ignora os miasmas. A alma vencida e rançosa lateja o corpo doente. A menina me oferece uma flor. Não só a mim. Há um conglomerado de carros esperando o sinal da partida. Ela entrega flores e sorrisos sem olhar quem os recebe. Despetala-se. Observo do carro uma espectral memória que não sei de onde vem. Analiso-a, tento tirar sua roupa na esperança de abandonar o sentimento já velho, mortal e poeirento. Poderíamos até dizer que havia um clima de abismo no ar, provocar alguma reflexão ou piedade. Não queremos. O sinal parou e nem questionamos o porquê. E não é o congelamento do sol que esperamos?

Vejo a engolidora de espadas acompanhada de falsos profetas. Seios fartos. Boca pintada em carmim. Imagino o rasgo. O estômago será o porto dos sentidos. Um cachorro passa latindo, carros buzinam. Imagino os sons como aplausos de antigos minuetos. Ganham novas cores, tons dançantes, canções e beijos secretos. A espada desce ainda mais fundo. O esôfago parece enfrentar alguma resistência.

Um homem pendura o saco de balas no retrovisor. Grita a garantia da sobrevivência. O corpo suado, moreno. Camiseta suja. Sorriso perfumado pelo grito. Analiso rapidamente os botões da minissaia da moça e me assusto quando descubro o brilho da espada que já vai saindo sob os reflexos do sol. O homem bate com o dedo indicador no vidro do carro, sinalizo que não. Os ventos espalham o cabelo da engolidora, ela não se importa. O tempo de sempre assovia um calafrio no pescoço. Grave, os olhos esbarram no espelho e sentem o vazio. Ficam tontos. Apáticos. Esperava rasgões, feridas abertas. Um esôfago contraído e sem respiração. Debaixo daquela luz tão momentânea que a espada infligiu, o filtro de sempre. Nos acostumamos aos filtros.

A engolidora de espadas abandonou o picadeiro. As roupas carregam um ressaibo amargo. O sinal abre e mal tenho tempo de alavancar o carro sob as reclamações em ricochete de rodas que passaram repentinamente a cem quilômetros por hora.

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Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

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