Crônica Meia hora de felicidade.
Imagem de ? Mabel Amber ?, Messianic Mystery Guest por Pixabay
Meia hora de felicidade
Quando jovem eu trabalhei em um supermercado que ficava no mesmo quarteirão de uma praça agradável e bem arborizada. Todos os dias após o almoço eu ia nela para tirar minha hora e aproveitava para recarregar as baterias.
Assim como eu, comecei a reparar que inúmeros trabalhadores da redondeza faziam o mesmo. Dentre todos, uma em especial me chamou a atenção. Ela sempre estava imersa na leitura. Sentava-se no gramado com o livro apoiado nos joelhos e os pés descalços em contato com a grama fresca.
Por muitos dias pensei em interrompe-la. Queria puxar assunto, saber o que lia? Que tipo de literatura a agradava? Mas, como leitor sei o quanto é chato ser tirado abruptamente da leitura para responder a curiosos.
Um belo dia a oportunidade apareceu. Assim que a avistei sem livro fui sem cerimônia em sua direção e me apresentei. Não foi difícil fazermos amizade, dois apaixonados pelo mesmo assunto se entendem. O nome dela era Catarina, e como me contou, tinha trinta e nove anos e trabalhava como auxiliar de serviços gerais de um hospital ali perto. Disse que almoçava em menos de trinta minutos para que sobrasse a outra metade do tempo para sua leitura. Mas que naquele dia em especial havia esquecido seu livro em casa. Conversamos muito, naquele e nos outros dias que se seguiram, ela fazia questão de parar a leitura para me dar atenção.
Catarina era uma mulher pobre de dinheiro, mas rica de conhecimento. Muito batalhadora, não deixava a peteca cair. Fazia muita hora extra para não deixar faltar nada em casa. Negra, cabelos curtos e com cachinhos, media 1,70cm. Seus olhos eram de enorme vivacidade e fazia questão de olhar diretamente nos meus enquanto conversávamos.
Numa dessas rápidas conversas, ela me contou que aqueles eram preciosos trinta minutinhos de felicidade, pois ela tinha a possibilidade de ler as prosas de Clarice Lispector, os poemas simples e encantadores da doce Cora Coralina e saborear o belo domínio das palavras nos escritos de Cecília Meireles. Isso a fazia refletir. Ela se sentia fora da própria realidade, era como se vivesse uma vida dupla. Ali, Catarina não se sentia mais uma. Sentia-se diferente. Num grupo seleto, privilegiado, e que pode viajar e se deleitar no que há de sublime nessas heroínas de nomes que começam com a letra C. Catarina era uma delas e se empoderava como mulher que nasceu para ser forte e respeitada.
Um dia ela levou um caderno para me mostrar. Lá ela escrevia contos maravilhosos, alguns causos que fez virar crônicas de dar gosto de ler e ainda se permitia poemizar nos mais delicados versos.
A sua história pessoal poderia ter sido de poucas perspectivas e sonhos, mas a literatura abriu uma fenda em seu cérebro, em sua vida. E se antes, talvez somente uma aposentadoria fosse seu futuro, a literatura lhe multiplicou vários “talvez”. E talvez ela algum dia escreva um livro e talvez ganhe um Prêmio Jabuti, e talvez seja uma escritora de sucesso, tudo isso inspirada pelas madrinhas fantásticas da letra C.
por Renatto D’Euthymio
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