Carina Lessa

Nada mais que o sol*

 

“Para entender a natureza humana, é preciso que todos os artistas desexcomunguem o corpo, investiguem, da maneira que só nós sabemos fazer, ao contrário dos cientistas, as ainda secretas e obscuras relações entre o corpo e a mente, esmiúcem o funcionamento do animal em todas as suas interações”. Rubem Fonseca

No dia seguinte, nada mais que o sol. Coberta de sombras esparsas corria em devaneios misturados ao frescor do sol sedento. Os cabelos dissolviam em sólidas máscaras que nunca foram capazes de arranhar a face da felicidade. Dificilmente esgarçara um sorriso. O interior do corpo era coberto de penas vermelhas trepidantes. Poderia se dizer que, um dia, as penas seriam capazes de esquartejar o corpo amorfo, que jamais denunciara a lucidez vermelha da vida. A palidez dilacerante comprimia a cada segundo a manifestação que desejava sair, mas não conseguia.

 

Ana sentou na areia desejando ser lambida pelo mar admirado. Sempre fora afeiçoada à liberdade manifestada pelas águas. Observou que dois pombos ao seu lado enamoravam-se, dividiam brincadeiras… jogavam um pequeno graveto de um lado ao outro como se estivessem decididos a eternizar o misterioso encontro. Um dia Ana seria capaz de derramar-se sobre o mar, mas ainda não era o momento.

Já era tarde, ela decidiu ir embora. No caminho, percebia que todos que a cercavam eram naturalmente entranhados pela vivência estanque do dia-a-dia. Voltavam do trabalho com suas maletas, terninhos, sapatos, maltratados pelo duro fim da jornada. Então… pela janela do táxi, Ana sentia-se atraída por nada mais que o sol … ele, o figurante enobrecedor das infinitas horas… mas ninguém o percebia.

Passando pela Niemayer, logo depois do mirante do Leblon, atirou imediatamente os olhos sobre um mendigo. Ele manuseava umas folhas de jornais com mãos sujas e calejadas. As folhas refletiam o olhar inundado da sabedoria vinda com a idade. Talvez também houvesse um misto de pesar. Não sei ao certo!

 

Cheguei em casa. Fui direto para a janela.

 

O giro derramava o misterioso encanto do ser desprotegido. Ele vagava em círculos na estrada como se não percebesse a morte eminente. Estava magro, seco. Os prédios não paravam de subir e descer. O asfalto sinuoso fazia redemoinhos que pareciam puxar a todo o instante. Absolutamente, ninguém o enxergava.

O entorno era espesso. Por isso se sabia do perigo. O incessante giro inebriava. Era noite quando o cachorro fora avistado. De longe, abraçara mil vezes o pequeno apenas com o olhar.

Como pode o homem não sentir a dor dos seres pequenos. O cachorro angustiava. Acho que já me vinha a náusea. Engasgava o soluço junto com a cegueira que percebia. Rodopiava, rodopiava… Os carros não paravam e afastavam o corpinho comprimido para outra direção. Subitamente, o silêncio!

A contração que estremecia o corpo tomou novos ares. O desconhecimento do caminho por onde o cachorro fora levado me causou a dor da perda.

 

Começava a recordar a infância. O cheiro entranhava as narinas famintas daquela infância. Acho que foi o cachorro! Ou a dor da perda?

 

         A infância morreu. Não se lembrava da morte. Apagou-se no mar. “Do mar nadam pontos de interrogações fascinantes”.

A mãe pegara a menina e a arrastara pela estrada. Foi uma longa caminhada. Ana? Sempre cosida dentro de si mesma. Não chorava, embrulhava soluços.

Mãe e filha pegavam carona na estrada desconhecida. Tudo era particularmente novo e assustador. A menina paralisada. Deslizando olhos irrequietos. As árvores corriam o verde sem parar. Isso Ana até que achava engraçado, mas não sorria.

“As emoções sempre presas… prestes a explodirem? E nunca explodiam”.

Ana nunca mais parou de olhar pela janela.

*Conto escrito aos 23 anos, sem modificações.

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Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

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