Carina Lessa

A Literatura como um Caffè Sospeso

 

“A estrela era o bule e aquele bule nos mantinha à mesa e fazia com que tivéssemos conversas que me tornaram quem eu sou” – Personagem

                Gosto de café. É uma situação fora do comum. Uma cafeteria aberta sempre é um convite obsessivo. Sento à mesa e passo alguns bons minutos com uma única xícara, que pode desencadear a segunda, a terceira e todas as outras. Se estou sozinha, construo diálogos com os personagens que se achegam na bancada e trocam meia dúzia de palavras com o vendedor. Se estou acompanhada, para manter os amigos à mesa, vou saboreando cada nota de modo que não falte mais uma história ou um hálito do tempo. Minha filha sempre fica angustiada:

– Mãe, pelo amor de Deus, acaba logo esse café!!! Você demora demais.

Quando vem o segundo, muitas vezes aromatizado (adoro o de avelã), segue o desespero…

– Outro?! Você passou vinte minutos tomando uma xicrinha de café e vai tomar outro?!

Sou uma criminosa investigativa e o meu cúmplice é o café.

Martín Malharro, escritor argentino, nos diz sobre o ato de escritura que a criação do personagem vai depender do humor. Fico pensando então que, se o café queimar, estamos perdidos. Vence o leitor. Sobre o processo de maturação é fundamental entendermos que, às vezes, tirando um pouco do vapor podemos produzir obra-prima. Alivia a pressão. Entendam: se o vapor não sai, fica tudo queimado.

Aprendi que, em Nápoles, assim como no Brasil, convidar para um café é dizer:

– Vamos ficar juntos?

(Há quem prefira pagar um chopp, mas sou intimista.)

A torrefação geralmente tem uma temperatura elevadíssima. Assim se desenvolvem aromas, sabores. Acreditem, muda-se inclusive a estrutura do grão, muitas vezes a pressão interna provoca rachaduras. Reações químicas imprevisíveis.

Volto ao Martín me aproveitando de uma anedota em que relata sobre as mesas do bar que frequenta:

Número 1 – Discórdia.

Número 2 – Encontro.

Número 14 – Morte.

Como um bom supersticioso, nunca se senta naquela última.

O caffè sospeso é a solidariedade a um estranho. O café fica em aberto e o barista decide a quem entregar. É um prazer imenso! Se alguém te oferece um café, você fica de bom humor. O ditado italiano reivindica: “Café é um abraço numa caneca”. A verdadeira fraternidade de uma revolução.

Um café pode ser preservado no sentido de continuidade, não um legado. Observe. Constrói-se com café uma relação em aberto, uma relação de sobrevivência. A pandemia nos trouxe muitas escolhas banhadas em cafés pela manhã. Desses que nos acordam da madrugada escura, esperando a luz benfazeja da liberdade. De alguma maneira, um tanto insólita, ficaram preservadas identidades um tanto perigosas, empertigadas.

Vai daqui uma cafeteria aberta e a obsessão em receber os melhores sabores e aromas possíveis diante de histórias tão inoportunas quanto o tempo.

 

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Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

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