Oswaldo Eurico Rodrigues

Esteios

Ora agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.

(Machado de Assis in “Um apólogo”)

 

Estávamos conversando dia desses sobre nossas famílias. Minha esposa falava de como ela é parecida com meu sogro, nordestino típico: um homem lapidado na dura luz do semiárido. Antes de tudo, ser forte é mais do que necessário quando se tira o sustento do solo seco. Aprende-se, querendo ou não, a resistir e insistir. A vida é diariamente conquistada e retribui ao filho da terra o troféu da sobrevivência. Nessa força generosa, o velho Manoel Trajano acolheu e manteve os seus sob proteção e sustento. Falávamos sobre uma característica cara para mim: o dom de amparar e segurar as estruturas duma família independente do preço a se pagar por isso. Tanto meu sogro quanto minha sogra pagaram preços altos sem, contudo, desafiarem a honestidade (no sentido pleno do termo). Em realidade, continuam pagando. Agora, não mais pela família nuclear ou pela parentela. Continuam, de alguma forma, amparando o próximo. Não sei quem é esse próximo. Pode ser até mesmo você, leitor, ou mesmo quem escreve agora. São raras pessoas dum tempo persistente, combalido, porém eterno donde vieram também meus pais.

Fomos forjados sob o signo da fortaleza familiar, filhos do subúrbio e do campo. Não respirávamos o ar quente do sertão, mas absorvemos a atmosfera pesada da poluição dos grandes centros e resistimos. A toxidade jogada aos operários e aos campesinos é diferente, porém igualmente danosa. Nas fábricas e no comércio, a exploração do tempo em condições precárias de trabalho e remuneração insuficiente. Todas as facilidades cooperam para a maior produção e cumprimento de metas. Na roça, como dizemos lá em casa, a opressão se mascara no sotaque aparentemente manso e num cheiro delicioso da terra e das plantas maceradas como os corpos dos homens do campo. Homens e mulheres defumados na lenha, incensos vivos a perfumarem seus filhos com o aroma da resistência.

Somos peças raras como todas as outras de nossas famílias e das demais famílias da grande humanidade. Somos peças adaptadas aos climas, aos ânimos, as vontades e aos caprichos possíveis (aos impossíveis também). Peças de têmperas diversas e aspectos variados, todas capazes de se auto preservarem e de se reinventarem a ponto da grande engrenagem viva manter-se assim pulsante e desafiadora. Somos uma única máquina de mecanismo difícil e mutável. Recriar os modos, as atitudes e os estilos vem de sempre. Existir em recriação constante requer muito de cada um. Criam-se normas de vida pacífica na guerra diária por ser e ter (e aparentar ter e ser). Ter a força dos titãs com a doçura duma brisa gostosa no fim de tarde a beira mar é imperioso. Buscar aprendizados no entorno de si e em si é navegar no universo infinito duma existência finita. A angústia cresce e se dissipa porque temos de viver em plenitude. A razão nos puxa do abismo da melancolia e da tristeza. Continuamos. Em pouco tempo, somos assaltados por sentimentos arrebatadores de festividade e risos inconsequentes. Não raro, prantos e explosões de ira. Vivemos nesse vai-e-vem entre mente e coração. Realidade e sonho. Utopias e possibilidades. Fala-se até em distopia. É um misto de tudo isso num mesmo espaço-tempo absorvido diferentemente através de inúmeras e singulares percepções.

Como se pode ver, esse luxo de existir é caro! É difícil! Como manter tamanho custo? Como construir o edifício nosso de viver? Somos ora subsolos ora coberturas. Porões, senzalas e bankers por baixo; palácios, mansões e quartéis por cima. Entre esses, as casas: lugar de aconchego e de reencontro do essencial; dos nossos semelhantes nem sempre tão semelhantes (posto sermos únicos) recarregar as baterias todos os dias para o maior número possível de dias debaixo do sol.

As aparências das construções são várias. Dependem da época, dos recursos de cada local e das posses e gostos de cada família. Em geral, a estrutura piso, paredes e telhado é um clássico. É assim no nosso imaginário desde criança quando nos pediam para desenhar uma casa. No caderno de desenho, vinha logo um quadrado ou retângulo com um triângulo à guisa de telhado, uma porta e uma janela. Não podia faltar a chaminé (no meu caso, não sei pra quê. Não há lareiras nas casas da minha terra). Muitas crianças desenhavam as telhas lindas. As minhas pareciam escamas de peixe. Às vezes como bandeiras de São João. As portas poderiam ser arredondadas no topo ou perfeitamente retangulares. Nas janelas, as cortinas amarradas atrás dos quatro panos de vidro: cada um deles quadrante separados por uma cruz. Ao lado da arquitetura pueril, o paisagismo desproporcional duma árvore com maçãs ou laranjas. As flores maiores do que as frutas, a grama alta…

Sabem? Eu andei, numa época da minha vida, querendo ser arquiteto. Cheguei a cursar edificações antes de ir para a faculdade. Vou te dizer uma coisa:  numa construção, as etapas requerem esforços, custos e técnicas diferentes. Evidentemente, temos de aprender a gerenciar todas elas. No entanto, nos agradamos mais de uma etapa do que da outra. Sempre gostei da sondagem do solo. Ver as camadas da terra e encontrar o firme é instigante. Escava-se, escava-se e chega-se ao nível capaz de sustentar o prédio. No meio da empreitada, os mata-cães, os lençóis d’água, os vestígios duma época e o embargo da obra quando se descobre algo de valor arqueológico ou paleontológico. Passando essa fase de sondagem e escavações, vamos para fundação. Enterramos as sapatas que sustentam todo o edifício. O concreto armada vai subindo em alicerces e pilares, ambos igualmente escondidos, mas reveláveis em reformas ou propositalmente exibidos em alguns estilos. O mesmo pode-se dizer das vigas. O chão, embora pisoteado, recebe os mimos e os aromas dos produtos de limpeza. As paredes nos abraçam com suas cores e texturas. O teto de vez em quando é visto quando resolvemos olhar para um lustre. E o telhado, essa estrutura complexa e difícil? Fica muitas vezes, escondido por um forro ou laje. Quando é aparente, deixa mostrar seu madeiramento e a parte de trás das telhas. Essa estrutura parecer apoiar-se sobre as paredes. Em realidade, há pilares que sustentam vigas, que sustentam a tesoura do telhado. Nas casas do interior, existe, na rusticidade das construções, algo chamado esteio. Uma madeira forte que sustenta todo o telhado. Não era difícil encontrar quem juntasse a esses esteios uma espécie de bancada de apoio. Penduravam chicotes, chapéus e toda sorte de apetrechos da lida no campo. Havia quem afixasse quadros com santos como pequenos altares donde se depositavam flores e outras oferendas. O esteio era uma peça importantíssima da construção. Quem era capaz de vê-lo? Quem adentrasse a casa. E os outros, os de fora? A esses, era coisa invisível.

O esteio tem de ser forte e de boa madeira. Bem trabalhado e bem instalado para suportar o peso da cobertura e das chuvas sobre ela. E quem pensa no esteio? Quando o telhado ameaça cair, cuidadosamente trocam-se as telhas e as empilham para o reaproveitamento. O madeiramento é substituído ou reforçado com novas ripas e remendos. E o esteio? Transforma-se tudo enquanto ele está ali, incólume. Nesse momento de retirada das peças, ele pode se livrar do peso. Doce descanso. Em breve (no mesmo dia de preferência), o telhado volta. Muitas vezes com as telhas escovadas sem líquens ou musgos. Elas vão ser a protagonista da festa da cumeeira. Nas ruas coloniais das cidades histórias, elas oferecem um espetáculo deslumbrante para os amantes da fotografia. Debaixo delas quem vê os esteios? Já vi muita telha retirada de telhado ser transformada em objeto de decoração. Vão parar nas paredes com gravuras coladas e verniz. E os esteio quando são atacados por cupim ou por umidade, o que se faz deles? São substituídos por outros esteios igualmente invisíveis. E os telhados continuam lindos na paisagem das cidades históricas do Brasil ou de qualquer lugar do mundo…

 

 

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