O voo dos pássaros
Esquecido de tudo, e sobretudo, de si mesmo, ele passa acordado noite e dia, e ainda ri de todas as coisas, sejam graves ou insignificantes, sem considerar a continuidade de toda a vida. Alguém se casa, outro faz comércio, outro fala à cidade, outros comandam, partem em embaixada, são eleitos, destituídos, adoecem, são feridos, morrem, e ele ri de tudo, dos mudos, dos melancólicos e dos que parecem felizes. (A cidade fala a Hipócrates sobre Demócrito)
Há visitas sempre atuais.
Não precisamos oferecer um nome à cidade planejada.
A linhagem dos personagens se apresenta, mas acreditamos que não se renovem ao longo dos séculos. Caro companheiro de jornada, receba o hóspede sem pestanejar. Suas palavras chegam espantosas e, de início, acreditamos ser blasfêmias jogadas nessa infinidade de janelas instantâneas. Aparecem em fotos das antigas polaroides, coloridas e com margens a serem preenchidas por anotações muitas vezes vazias, tais quais nos dicionários escolares. A história pode ser verdadeira, e cada um tem a sua.
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Tenha atenção, esta é a última chamada. Imaginamos que queira um parcelamento, desses que só a Caixa oferece até o fim da vida. Não perca a sua chance. Navegue pelo menu e escolha a melhor alternativa de pagamento, se possível chegaremos até você. Um parecerista o abordará em breve se certificando da qualidade nos trabalhos enviados. Se alguém te obriga a ficar em casa, receba o hóspede. Ninguém é obrigado a viajar, respeitar a ciência é coisa certa. Coloque o melhor blazer vermelho, sorria.
Se resolver passear pelo quintal antes da chegada do hóspede, não se esqueça de acarinhar as flores e fotografar o seu melhor ângulo com aqueles cabos de selfie. Dispare palavras como répteis gigantes.
Rafael julgou ver uma moça passar do outro lado da rua. Imaginou tocá-la. Em vez de sentir a vibração dos ossos, afastou-se. Talvez seja o tal vazio dos dicionários, o ar refrescou desagradavelmente e ele logo se viu dentro de casa. O vento anda curto. Nada das tempestades necessárias em tempos de calor. De imediato, prescreve a si mesmo um dose de claustrofobia, enquanto já abre o armário com roupas velhas e cheias de traças. Nem falamos do cheiro de creolina, hábito antigo da família que Rafael não consegue abandonar. Vai o cheiro de creolina e umas palavras raspadas na porta do guarda-roupas desde a adolescência. Ficou parado ali sem saber o que procurava e se assustou quando percebeu olhar pela janela. Uns pássaros indefiníveis voavam displicentes, não sabemos de quê.
Mude a planta, companheiro.
Um flautista, seu vizinho, toca uma cantiga nova.
Prazeres superficiais.
Moram na cidade algumas lacunas entediantes. O flautista até ignora, mas Rafael se pergunta se a música de fato toca. O som escorreu distante até a casa e bateu atravessado no guarda-roupas com aroma de creolina. Consideramos um ornamento artificial da cidade. Sentou, pegou do papel e acolheu a escrivaninha. Prazeroso mesmo seria a entrada de um homem às margens do quarto e do papel invulgar…
Não, não. Esqueça a planta.
O fato é que nessas paragens o barril não para de rolar, Rafael. Nós fazemos votos de que seja uma falsa impressão. Os vasos sanguíneos estão dilatados? Foi o que nos disseram.
Riso desmedido. Riso desmedido…
– A chave?
Estava o tempo toda na porta, companheiro, você não viu?