Carina Lessa

Conversa com Virginia

 

“Pensemos em cartas – em como chegam na hora do café da manhã e à noite, com seus selos amarelos e os verdes, imortalizados pelo carimbo postal – pois ver o nosso próprio envelope na mesa de outra pessoa é entender com que rapidez nossos textos nos deixam e se tornam alheios.” – Virginia Woolf

Não envio cartas. Gostava mesmo é de ser nada. O corpo social é diferente, está por aí flanando literário e ficcional – prostituído às regras de privatização. E sabemos sim sobre a atitude impassível de nossas mentes, abandonam os nossos corpos, aceitam o carvão e marcam encontros clandestinos, por isso fazemos Literatura ou, até mesmo, produzimos Teorias.

Qualquer um que invadisse minha caixa de e-mails saberia: não envio cartas. Não que sejam antiquadas. Tenho mesmo medo de que pensem exatamente o que me fala. Nas ruas, as palavras não são as que buscamos, porque se tornam manipuladas e reviradas. Cartas, para mim, têm endereço, não são para camaradas de colégio. Não existem para penetrar corações de indivíduos na esperança de tocá-los e modificá-los. Cartas são diários íntimos, correspondências antigas que requisitam cumplicidade. E, se o crime existe, somente aquele comparsa é capaz de riscar palavras do meu breve dicionário, da minha caverna luminosa.

Gostava mesmo é de ser nada, mas de repente descobri que sombras mancharam a rua. A porta estava aberta por meses, nesse descompasso do que acreditava ser a cumplicidade. Os tristes olhos, as bochechas pálidas e a expressão melancólica não alcançaram a compostura do silêncio absoluto. As cartas surgiram indiferentes e prostituídas pelas boas e velhas regras de privatização, aquelas que, para mim, deveriam somente ser relegadas à liberdade de um romance. Enquanto eu falava e sorria, o corpo era envenenado pelas palavras sórdidas dos homens, palavras ordinárias, conceituais. Dessas mequetrefes que você, querida amiga, lutou para fenecerem.

Os ossos das cartas ficaram babados de cor-de-rosa, romantização tosca. O navio avançou rapidamente em torpe medo e entregou a vela para que se quebrasse num corpo feminino. A ele não deram tempo de se debater, tentar fugir, violentaram o corpo da carta como se faz em sociedade quando escrevemos romances. Você diz a um cúmplice, seu amigo, que ele pode fazer o que quiser com o seu corpo e ele faz.

– Mas não foi você que entregou?

Sim. É verdade. A vida só se entrega em romance. O ser humano é incapaz de enxergar uma cumplicidade e oferece a nossa carne ao urubu mais próximo.

Você tem toda razão. Ou somos homens, ou somos mulheres. Não podemos entregar e-mails ou cartas sem que alguém pegue dos ossos, ofereça como recheados de carnes para que violem a justeza profunda e imparcial dos nossos corpos.

 

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Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

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