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Série: Literatura – Cap.#01 – Conto: “O Trovadorismo e suas Cantigas” – Prof. Renato Cardoso

Série publicada quinzenalmente às sextas na Revista Entre Poetas & Poesias - Instagram: @professorrenatocardoso / @literaweb / @devaneiosdumpoeta / @revistaentrepoetas

Eu tinha um tio que era vidrado em literatura. Lia sempre, lia vorazmente. Lia de tudo, desde simples poesias a livros complexos de filosofia. Era influência do meu avô Geraldo, que incentivou nos filhos o prazer da leitura desde criancinha. Aos doze anos, meu tio José já havia lido mais de 200 livros, e por causa disso ele escrevia como ninguém.

Um belo dia, chegando à casa da minha avó Gertrudes, com quem meu tio José morava (ficou solteiro uma vida inteira), o encontrei em sua biblioteca – seu local preferido da casa – como sempre lendo. Ele era professor universitário, dava aula na Universidade Federal que havia em nossa cidade.

Ao perceber minha presença, me convidou para sentar-me ao lado dele. De pronto aceitei (gostava de ouvi-lo contar as histórias literárias), ele estava preparando uma de suas aulas. Era início de semestre e o tema era Trovadorismo. Ele, olhando minha curiosidade, me perguntou: “Você sabe o que foi o Trovadorismo?”. Mesmo tentando lembrar-me de algo, respondi: “Não!”. Ele deu um sorriso de canto de boca (como quem tratava o tema com uma simplicidade extrema) e disse: “Se já falou com sua avó, fica aí que te contarei tudo”.

Já havia falado com a vovó, que estava ocupada costurando, logo puxei um banco e sentei-me perto dele. Tio José abriu um livro e começou:

“Garoto, toda e qualquer história a ser contada precisa ser contextualizada, lembre-se sempre disto. Não há entendimento sem contexto histórico. E a história que vou lhe contar começa, mais precisamente, no século XII, na Idade Média. A Europa era dominada pela Igreja Católica, que detinha boa parte das terras. A outra parte ficava a cargo dos monarcas, que as cediam aos nobres, que por sua vez cediam a outros nobres em troca de proteção (relações de suserania e vassalagem, respectivamente), e, na base da pirâmide, apareciam os servos que exploravam as terras e repartiam parte de sua produção com os acima deles. A Europa estava em constante guerra devido as invasões dos povos germânicos. Deus era o centro da vida (teocentrismo), o homem buscava a salvação de sua alma e a Igreja realizava as Cruzadas, que em nome de Deus, faziam expedições para “libertar” a Terra Santa dos muçulmanos e dos heréticos”.

Prosseguindo, ele perguntou: “Entendeu?”. Não havia como não entender. Ele contava a história com um brilho no olhar diferente, parecia que ele estava vivendo o momento.

“Garoto, toda escola literária tem suas características e a maior do Trovadorismo é, sem dúvidas, o amor platônico. Os trovadores (nobres que escreviam as cantigas) foram influenciados pela lírica grega, ou seja, traziam em sua obra as características da arte clássica, como por exemplo: o canto, o acompanhamento musical (as cantigas eram cantadas por trovadores e acompanhadas por músicos e seus instrumentos musicais), a devoção a Igreja Católica e a reafirmação do sistema feudal citado acima. O Trovadorismo teve como marco inicial a Cantiga da Ribeirinha de Paio Soares de Taveirós. A poesia da época era chamada de poesia Provençal, pois se originou na região de Provença na França, tendo ampla divulgação na Península Ibérica. Os textos escritos eram chamados de cantigas, sendo subdivididos em: cantiga de amor, de amigo, de maldizer e de escárnio” – explicou calmamente meu tio.

Eu ficava imaginando como era na época. Imaginava uma corte cheia de música e poesia, cheia de namorados apaixonados, guerreiros se vangloriando de seus feitos. Realmente, tio José sabia como falar sobre literatura, mas ele não havia acabado e eu não tinha coragem de interrompê-lo.

“A Cantiga de Amor retratava o amor idealizado de um homem por uma mulher. Era escrita em primeira pessoa e o eu-lírico era masculino. O cenário era o dia a dia da corte e o tema, a amada inatingível. Devido a este amor platônico, o sofrimento amoroso era constantemente descrito, pois, para o amado, a mulher era tão idealizada que o amor era impossível. Já a Cantiga de Amigo retratava o amor de uma mulher pelo seu “amigo”, a saudade e a distância por motivos de guerras. O eu-lírico era feminino, mas quem escrevia era um trovador. Esta cantiga tinha um tom mais confessional, ou seja, a mulher se dirigia sempre a Deus, à mãe, a uma irmã ou amiga. O linguajar era mais simples que a primeira. Portanto, ambas retratavam a manifestação dos sentimentos, sendo também classificadas como cantigas líricas” – relatava empolgado com sua explicação.

Eu me pegava pensando como deveria ser sofrer por amor na Idade Média. As maiores informações que nós temos sobre o período, vemos em filmes e nos livros de história. Nesse momento, me lembrava dos meus professores Ivan e Martha, História e Literatura, respectivamente. Minha avó trouxe um lanchinho para nós, mas mesmo assim meu tio não quis parar e acrescentou:

“Falta pouco para acabar menino. Chegamos agora nas cantigas satíricas, aquelas que de uma maneira, direta ou indireta, faziam críticas sociais. Era uma modalidade de poesia da época que era cantada por jograis (trovadores que não eram da nobreza). Nas cantigas satíricas eram permitidas cantar coisas que em outras situações não poderiam. Essas produções eram divididas em cantigas de maldizer e escárnio, que ao contrário das líricas, a diferença entre elas era quase imperceptível. Nas Cantigas de Maldizer a crítica era bem direta, falava-se o nome de quem era criticado e o linguajar era bem irônico. Já na Cantiga de Escárnio, as críticas eram indiretas, o linguajar mais sutil e o nome do criticado não era dito”.

E para terminar de fato, ele completou:

“Quer ler umas cantigas do período trovadoresco? Para isto, basta procurar algum Cancioneiro (coletâneas de cantigas com diversos autores), os mais conhecidos são: da Ajuda, da Vaticana e da Biblioteca Nacional. Não deixando de falar que os principais autores são: Paio Soares de Taveirós, Martim Codax, Ricardo Coração de Leão, entre outros”.

Ele terminou toda a explicação. O café que minha avó havia trazido estava quentinho e cheirava como ninguém. Meu tio fechou o livro e me convidou a lanchar com ele e assim terminou o nosso primeiro encontro sobre literatura.

 

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Renato Cardoso

Renato Cardoso é casado com Daniele Dantas Cardoso. Pai de duas lindas meninas, Helena Dantas Cardoso e Ana Dantas Cardoso. Começou a escrever em 2004, quando mostrou seus textos no antigo Orkut. Em 2008, lançou o primeiro volume de “Devaneios d’um Poeta” e em 2022, o volume II com o subtítulo "O Rosto do Poeta". Graduado em Letras pela UERJ FFP e graduando em História pela Uninter. Atua como professor desde 2006 na rede privada. Leciona Língua Inglesa, Literatura, Produção Textual e História em diversas escolas particulares e em diversos segmentos no município de São Gonçalo. Coordenou, de 2009 a 2019, o projeto cultural Diário da Poesia, no qual também foi idealizador. Editorou o Jornal Diário da Poesia de 2015 a 2019 e o Portal Diário da Poesia em 2019. É autor e editor de diversos livros de poesias e crônicas, tendo participado de diversas antologias. Apresenta saraus itinerantes em escolas das redes pública e privada, assim como em universidades e centros culturais. Produziu e apresentou o programa “Arte, Cultura & Outras Coisas” na Rádio Aliança 98,7FM entre 2018 e 2020. Hoje editora a Revista Entre Poetas & Poesias e o Suplemento Araçá.

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