Carina Lessa

Paisagens

 

– Tenho uma Remington 33 azul.

Quando era pequena via aquela caixa cinza cheia de mistérios agarrada a pó na estante da sala. Objeto estranho e pesado. Sentada na poltrona do castigo, verificava os movimentos de minha mãe limpando a casa assim meio de rabo de olho, porque na verdade não deveria arredar os olhos da televisão desligada. Coisa de mocinha que andou sentando de perna aberta ou removendo palavras incorretas do lugar. Castigo de uma hora. E põe imaginação naquela tela desligada refletindo os movimentos da pequena sala. Da tela, saíam os enquadramentos do entra e sai nos quartos, mas também os da mente. Eu encarando aquele trambolho cinza com entrada para as minhas mãos curiosas. Mas estava de castigo, sentada na poltrona avermelhada, que tinha uns botões com os quais me distraía passando o dedo meio entediada. Tentava arrancá-los.

Esqueci de dizer: a poltrona ficava ao lado da janela. Com os meus cinco anos, era muito pequena para alcançar a dimensão que vinha de fora. De onde eu estava, o céu se revelava por uma espécie de formato triangular esquisito, mas com uma luz muito boa e na qual se via, muitas vezes, alguns pombinhos atrevidos. Bom, isso acontecia depois de alguns minutos conforme eu ia esmorecendo, debruçando a cabeça no braço da poltrona e balançando as pernas para o outro lado. O susto. O grito. Na claridade já via um chinelo Havaiana que me sobressaltava o estômago e o resto do corpo todo de uma vez. Respirava fundo e lá estava a TV desligada e a caixa cinza sobre a qual tinha medo de perguntar.

Também havia o castigo do portão gradeado. Do alto do portão, escada abaixo era possível ver crianças brincando e rindo enquanto eu as encarava soluçando baixinho… mas essa é uma narrativa para outros intentos, não percamos o foco.

Um dia, eu arrumei coragem e perguntei sobre a caixa pesada, removida a custo nos dias de limpeza. Sem me dar muita trela, mamãe respondera ser uma máquina de escrever.

Fiquei imaginando se era a responsável por dar vida às histórias que me encantavam no livro de português. Havia uma bem interessante de um tal de Garrincha, que tinha as duas pernas tortas para esquerda. Não é muito esquisito? E como é que ele jogava? Era o melhor da vez, não tinha pra ninguém. As histórias daquele pequeno Garrincha me fizeram entender pela primeira vez os tapas quando a tia gritava na alfabetização. O “você não pode porque que é canhota” teve tempo curto na minha vida, apesar de até hoje escovar os dentes com a mão direita.

Bem. Vai daí mais cinco anos, não vamos ficar buscando todos os caminhos da narrativa. O fato é que tenho uma Remington 33, produzida na década de 1980 e a toquei, finalmente, ao dez anos. As aulas de informática começavam a chegar nas escolas, ainda fora do currículo (pelo menos aqui no Brasil) e meus pais dizendo que eu precisava aprender. Era coisa nova, dessas de gente que deseja ser alguém na vida.

– Mas, mãe, escritores usam máquina de escrever. Eu vi nas fotos, não é assim que funciona.

Foi minha primeira rebeldia (do meu ponto de vista, é claro). Nunca tivera uma conversa tão complicada.

Venci.

No caminho para a primeira aula de datilografia…

(Sim, me conseguiram uma aula em São Gonçalo em 1995)

No caminho, olhava o tênis preto amarronzado de poeira. Olhei pelos bons quatro quilômetros até chegar à escola. A terra em redemoinho e as pancadas na cabeça à medida que temia as consequências do atrevimento. Respirava mais livremente quando imaginava a futura aula.

Até hoje digito no computador com a disciplina da Remington 33. Gosto dos movimentos clássicos. O curso durou apenas um mês, interrompido por contingências dramáticas da vida e eu ainda respeito os movimentos clássicos. Caminhava talvez para a oitava aula, já agora distraída, feliz, dando gargalhadas com um sorvete na mão…

(pausa longa, uma lacuna narrativa. O caminho  nesse espaço de tempo de nada tem a ver com o percurso  aqui empreendido)

Ficaram os movimentos clássicos. É interessante como ao escritor cabia o solavanco das páginas voando… imaginava-me amassando as páginas com raiva só para depois ter a delícia de as rever. Não amassamos telas embotadas pela luz artificial. Mantenho as versões, é claro. Preferia começar do zero. Os clássicos revisam de modo a reinventar do zero. Um zero permeado de versões in(acabadas), in(autênticas).  As palavras ficam perdidas em versões amassadas a serem re(descobertas).

Tenho uma Remington 33 e ela está aberta. Ainda azul feito os mares que nunca naveguei.

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Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

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