A tarde em mim
Depois de revisitar-me
Em tantas fases de pesadelos e sonhos
Calo-me com o cheiro do entardecer
Nesse sol frio que se vai
Sinto que ainda estou aqui…
(Michelle Carvalho)
Nada é por acaso…
Revisitar-se em uma música, um sabor, um cheiro, um livro, um trecho de texto pode ser uma viagem ao céu, ou não…
Quando tal visita ao passado traz sentimentos de sofrimento, dor ou lamento é porque o local visitado não está cicatrizado, não se trata de uma “casa” saudável, e sim, de uma “casa” rachada, com lixo, escombros, em obra abandonada.
Quando revisitamos e conseguimos olhar de fora as cenas vividas, os momentos passados e depois retornar ao cotidiano, temos a certeza do aprendizado. Abrimos, olhamos, lembramos, pois já não dói como ferida exposta, apenas sabemos que passou. Aquele momento revisitado, agora superado, nos ensinou muito e nos fez melhores. Fechamos a porta e podemos voltar quantas vezes quisermos para nos orgulharmos de como conseguimos prosseguir “apesar de tudo” e ser como somos “por causa de tudo”.
Um turbilhão de coisas nos invade e eclode em conversas despretensiosas. A verdade pode ser absoluta em alguns casos, em outras a mentira pode ser a certeza, mas tudo depende do parâmetro. Depois de muito refletirmos, vemos que existem verdades relativas. Algo pode ser pavoroso, mas não sempre…
Nem tudo vive num molde de rol taxativo: o “careca” nem sempre é uma pessoa sem nenhum fio de cabelo na cabeça porque basta estar apresentando calvície que já lhe é atribuído o adjetivo de “careca”; o “ser gordo” tem uma relatividade impressionante principalmente nos parâmetros de hoje em dia.
O que estipula tudo isso?
Tantas “verdades” e moldes nos são colocados… Se você é médico, tem de possuir tal estereótipo e características; se você é escritor, tem de ser intelectual e beber café; se é advogado, tem que falar palavras difíceis e saber artigos de lei na ponta da língua. Quem sai destes parâmetros não se encaixa…
Sejamos médicos, escritores, advogados, professores, chefes de cozinha ou tenhamos qualquer outra profissão, ninguém precisa imbuir-se de rótulos que são esperados pelos outros, caso assim façamos, seremos martirizados por termos de ser algo que almejam em nós, mas que jamais seremos.
Eu também fui invadida pelo turbilhão que mencionei acima, e em uma conversa despretensiosa, um velho amigo de infância puxou assunto. Ele me conheceu quando eu ainda não tinha o engessamento que a maturidade traz. Ele criança me conheceu criança e somente nesta fase tivemos contato, nos conhecemos no espelhamento da essência para a essência da época pueril da vida.
Conversamos “por acaso” e, em meio a múltiplos assuntos, eu disse que não gosto de praia, pois tenho pavor de sentir a areia nas minhas mãos e nos meus pés, ao que ele me respondeu: “Como assim? Aquela menina que não saía do mar não gosta mais de praia?”
Eu relembrei que quando retornei já adulta ao lugar em que nos conhecemos ainda crianças, eu mergulhei no mar, pisei, rolei, segurei na areia e a sensação lá não era tão desconfortável como é nos outros lugares. Realmente, lá aquilo não me afetava como afeta hoje. Eu me revisitei…
Ele tinha plena razão ao dizer: “Lá é a nossa Terra do Nunca”.
Aquele lugar é onde nos encontramos com o momento em que as peças de ferro da armadura da vida ainda não haviam sido colocadas sobre nosso corpo.
Lá eu era quem eu sou na essência, antes dos medos, das regras, da vergonha do corpo, da necessidade de ter e estar para o outro. Lá eu estava fixada no momento presente, vivendo o instante sem pensar com ansiedade no futuro ou na próxima tarefa.
Hoje eu encaixei mais uma peça.
Interessante ver que temos uma “Terra do Nunca” em que podemos nos visitar e levar a nossa criança pra passear. Ela é sábia e mostra que o nosso corpo pode ser o que sonhamos e desejamos, porque estes desejos nada mais são do que algo que fazíamos com facilidade quando pequenos, porém não mais nos recordávamos.
Outras coisas, mesmo que desejadas, não eram possíveis antes nem agora, mas tudo bem, a criança também lida com limites…
Tenho que voltar mais vezes à minha “Terra do Nunca”, o lugar em que mesmo com algumas tristezas trazidas pelas perdas, possui a presença da alegria e da segurança em todos os passos. Preciso revisitar-me e levar-me àquele mar onde minha criança interna sai saltitante pra mergulhar…
Onde é a sua “Terra do Nunca”? O lugar no qual foi sinestesicamente moldada sua história?
Qual é o lugar onde um amigo de infância te reconheceria pelas características de sua essência antes do engessamento trazido pelos anos que a vida e a sociedade lhe impuseram?
Michelle Carvalho
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Fonte:
Imagem destacada: Arquivo pessoal da autora – Fotografia: Fabiano Oliveira