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Suplemento Araçá – Vol.02 – nº01 – Jan./2022 – Crônicas & Opiniões – “CLARICE NOS AJUDA A LEMBRAR DOS PROBLEMAS DA CLAREZA…” – Lucas Salgueiro Lopes

ISSN: 2764.3751

CLARICE NOS AJUDA A LEMBRAR DOS PROBLEMAS DA CLAREZA…
Lucas Salgueiro Lopes

“Estou sentindo uma clareza tão grande / que me anula como pessoa atual e comum: / é uma lucidez vazia, como explicar?”. Sem dúvidas, é mesmo difícil de explicar tal sentimento que Clarice Lispector descreve em seu poema[1] “A lucidez perigosa”, de 1972. Mas, o que um primeiro olhar menos atento não conseguiria prever, é que esse texto tem mais a dizer sobre os dias atuais do que imaginávamos. Tal sensação, provavelmente não vem por uma intencionalidade futurística da escritora, mas, sobretudo, pela irresistível familiaridade que nos remete a uma das maiores angústias de nossos tempos: os problemas da clareza.

Quando pensamos numa sociedade tomada pela “clareza”, poderíamos ter como uma primeira referência o movimento cultural-filosófico do Iluminismo, que encontrou seu auge na França do século XVIII (conhecido como “Século das Luzes”) e gerou uma forte onda de ideias de liberdade e combate ao absolutismo naquele contexto. Mas esse ainda não seria o momento da “sociedade da clareza” que vivemos hoje. A filosofia do movimento, além de não tocar nos pontos centrais que trataremos aqui, logicamente, não se alastrou instantaneamente por todos os estratos sociais e por todos os cantos da Terra.

Assim, é importante lembrar também que ainda estamos falando de uma sociedade disciplinar naquele contexto. As sociedades disciplinares, situadas por Michel Foucault nos séculos XVIII e XIX, com auge no início do século XX, são marcadas pelos grandes meios de confinamento e pelo objetivo de domesticar o corpo. Imagine uma prisão com seus diversos estereótipos: esse é o modelo de sociedade que se tinha! Durante boa parte da vida, os indivíduos passavam de um espaço fechado para outro: iniciando pela família, depois a escola, a caserna, a fábrica, passando pelo hospital, podendo chegar até mesmo à própria prisão. Lugares fechados, mas que, Foucault informava, estavam com seus dias contados.

Essa vida regida pela disciplina, disposta num ambiente escuro e sombrio, no entanto, cada vez mais se transportava para um “espaço iluminado”. Para outro filósofo francês, Gilles Deleuze, depois da Segunda Guerra Mundial, não éramos mais uma sociedade disciplinar: chegávamos à sociedade do controle. Assim, Deleuze diz que há uma “crise generalizada de todos os meios de confinamento”, mas não um fim da dominação; seguimos sendo controlados, porém, agora, sob uma aura de liberdade. Tudo é mais fluido e passa a ser mais claro; mas isso nos faz enxergar melhor e viver mais livre? Clarice responde:

“Estou por assim dizer / vendo claramente o vazio. / E nem entendo aquilo que entendo”. Tal sentimento, como destaca outro filósofo, Byung-Chul Han, vem dessa sociedade do controle, onde somos regidos por um novo tipo de panóptico: o digital, onde, ilusoriamente, todos nós imaginamos ter total liberdade, dada a ligação em redes entre os indivíduos e as inúmeras formas de comunicação. Mas, consequentemente, como lembra Han, nesse novo tipo de supervisão “é possível ser iluminado e tornado transparente a partir de todos os lugares, por cada um”. Toda essa “clareza” e excesso de possibilidades para nos comunicar, não nos faz comunicar melhor! A sociedade do controle se torna uma sociedade da transparência, que é uma sociedade da informação, incapaz de informar: quanto mais claro, menos vemos. Como diz o filósofo: “a sociedade da transparência é opaca”.

“Além do que: / que faço dessa lucidez? / Sei também que esta minha lucidez / pode-se tornar o inferno humano”. Fica difícil saber o que fazer no meio do turbilhão: mais informação e mais comunicação não clareiam o mundo, ou, como destaca Han: “a hiper informação e a hiper comunicação não trazem luz à escuridão”. Não à toa, Clarice nos lembra que toda “lucidez” pode vir a se tornar o nosso inferno humano. Ora, o “inferno humano” nada mais poderia ser do que um lugar sem prazeres, como é, por excelência, a sociedade da transparência. O prazer requer a sedução, da qual fazem parte o mistério, a fantasia. A transparência é simplesmente pornográfica. Em torno de todos os aspectos do social, pensamos enxergar tudo, mas não vemos nada; o controle se faz pela universalidade do desnudamento. Como nos alerta Clarice: “essa clareza de realidade / é um risco”.

Como Deleuze destaca, não devemos perguntar qual sistema é “mais duro”: a passada sociedade da disciplina ou a atual sociedade do controle. Ambas têm seus problemas, pois, entre liberações e sujeições, vamos experimentando sentimentos de angústia, confusão e vazio. Han diria para nos alertarmos: toda essa luz que causa a transparência da nossa sociedade contemporânea não é, necessariamente, proveitosa. Clarice, em toda sua sensibilidade sobre o íntimo, nos indica, como caminho último, uma forma de rogação: “Ajudai-me a de novo consistir / dos modos possíveis. / Eu consisto, / eu consisto, / amém.”.

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REFERÊNCIAS

Byung-Chul Han – “Sociedade da Transparência” (livro).

Clarice Lispector – “A lucidez perigosa” (poema).

Gilles Deleuze – “Post-scriptum sobre as sociedades de controle” (texto).

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[1] Nota dos editores: O trecho em destaque integra a obra em prosa A descoberta do mundo, coletânea de crônicas publicada por Clarice Lispector, em 1984. A prosa poética da autora vem, contudo, sendo lida e analisada, com certa frequência, pela perspectiva de seus arranjos líricos, olhar que pauta o presente texto.

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Lucas Salgueiro Lopes é Mestrando em Educação da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP/UERJ), e Pós-graduado em Educação Básica – Gestão Escolar pela mesma instituição.

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