Carina Lessa

O observador

 

Sou um sujeito doente… Sou um sujeito maldoso. Um cara repulsivo eu sou. Acho que o meu fígado está mal. Alíás, não entendo patavina de minha doença e nem sequer sei o que me dói. Jamais me tratei nem me trato hoje, com todo respeito pela medicina e pelos doutores. Ainda por cima, ando supersticioso ao extremo, digamos, a ponto de respeitar a medicina. (Sou instruído o suficiente  para não ter superstições, mas, ainda assim, tenho-as.). Eu sei, melhor do que qualquer outra pessoa, que tudo isso não vai agredir ninguém, mas tão só a mim mesmo. Contudo, se não me trato, é por maldade. Dói-me o fígado, então que doa mais ainda!  (Eu em Dostoiévski)

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                Tudo começou quando eu era criança. Numa casa sem livros, você só pode contar com a própria imaginação. Primeiro veio a Laurinha. Uma menininha linda, loura e cacheada. Era geniosa.

– Carolzinha, pegue as panelas agora, se não eu vou embora.

O sorriso era tão doce, apesar de diabólico, que eu não podia dizer não. Também devo confessar que ela tinha de ter muita paciência com os meus pitacos. Você acredita que eu a colocava sentada a escutar minhas aulas? Ficava lá sentadinha, sem dar um pio, copiando meus rabiscos do quadro negro com desenhinho da Turma da Mônica ao lado direito. Muitas vezes eu esquecia ser a professora, dava minhas gargalhadas e rabiscava a cara toda da Laurinha. Tinha três anos.

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Deixo a pequena anedota e sigo outros passos, tenho vontade de escrever um prefácio. Escrevo um prefácio para um livro que não li. Não preciso dos pormenores. Um amigo me pede. Abandonaria agora o mundo inteiro para ter todos os nomes que mereço e, depois disso, voltaria ao apartamento de dez andares que pretendo construir. Sabe-se lá como desatar um nó bem dado, sigo as margens, visualizo um lago e apreendo alguns senhores da minha razão. Gostaria de receber sensações externas que apresentassem certa instabilidade corporal, reverenciando a histeria promovida por Freud. Eu alcançaria certo status bem definido pelos homens vazios. Aqueles aos quais se agradam do banquete freudiano de mulheres estraçalhadas por seus gênios malfeitores. Minha eterna irritabilidade não me permite. Bem, quando tenho bom humor, jogo-lhes uns peões de iscas, fingindo-me frágil senhora.

Cuido-me.

Na verdade, por vezes, quando fico entediada, deixo que me ofereçam visitas. Entra uma espécie de chefe de repartição na minha morada e logo me arrependo. Maldito bom humor, vai carregando a paciência e, num segundo, espanto o chefe do gabinete. Penduro um aviso na porta, poderia me ver rosnando feito animal selvagem… Tarde demais, os bichos se agigantaram e não param de se condoer numa suposta lucidez que me entrega problemas que nunca tive. Felicidade mal vista. Bajulação desnecessária, recebo.

Admiro os que julgam distinguir o céu do inferno. Podem nos julgar e estabelecer meia dúzia de conceitos que lhes abraçam feito colo de mãe gentil. Não sei a diferença entre um campo verde e uma mata estraçalhada pelo fogo. Muitas vezes visto máscaras zangadas para que deixem meus sorrisos em paz. Enquanto isso, as cinzas vão chegando e sento no banco vazio. À frente, um lago calmo reflete pássaros noturnos. Uma folha de árvore repousa ao meu lado no banco. Chega delicadamente, coadjuvante, verde, livre da cela das vossas árvores.

O vento sibila…

Um amigo me pede um prefácio.

Não sei se a velhice substitui a sensualidade, para mim sempre tão ligada à filosofia que jamais a ligaria ao corpo. Também pergunto-me o quanto meu corpo é refém daqueles que eu amo. Sei que aprendi sobre a felicidade, algo sempre dispensável, cada dia mais difícil à medida em que envelheço.

O corpo e a filosofia. Não há sexo e o corpo fica prenhe de sensualidade. É mais forte do que o torpor de qualquer droga alucinógena que nunca experimentei. O conforto gelado das mudanças, das velhas dores que atravessaram muitas gerações. Novos lugares aceitam o lugar do velho, duas almas desprovidas de originalidade. Estou tonto e sei que ficarei bem, seja qual for a extremidade da vida.

Os dias úteis da semana não são para astronautas. Os chefes de repartição jamais entenderão isso. Sentem saudades da mesma família, da mesma casa, do mesmo repouso, das mesmas mensagens de Whatsapp. No espaço, não há ciência que nos conduza, não há chão, você não vê as pegadas. Os chefes de repartição queimam neurônios enquanto astronautas deitam voadores nas nuvens dos próprios tempos. Almas prenhes de canções espaciais. A nossa casa não existe. É uma poção tão real quanto as estrelas que deixaram de existir. Os fantasmas, caros amigos, são o interior que vocês visualizam ao sentar nos telhados de vossas casas. Nos sonhos, eles aparecem, sobe o tom da ópera e só existem vossas mentes. O seu espírito e a vossa dor.

No meu prefácio, é a minha voz que grita em prolongamento de várias realidades. No interstício entre o prazer e a dor, entre os ventos e a disciplina monástica. Somos assim. Jogo algumas identidades e deixo que se divirtam, como se diz, as minhas custas. Enquanto isso, vivo nas palavras do pensamento. Fazem viagens tão torpes que chegam verdadeiras. Reencontro lembranças invasivas em tardes calorosas. convivo com afetos e reviso um português que não é meu. Na tentativa de mudar este corpo, vejo pelos crescerem compulsivamente por toda parte, revelo algumas mudanças, enfatizo certos parágrafos, apresento-lhes, se possível, a masculinidade escondida. Percebo novos tempos que deixariam Darwin envaidecido, forças mentais insuspeitas no século XIX, enquanto muitos apressados entregam-se à intoxicação da biotecnologia. Não é de seleção social que vos falo, mas de seleção individual. Escrevo uma crônica, talvez? O meu prefácio não é acessível ao tempo contemporâneo, narra histórias imprevisíveis de um corpo em movimento. Cidade nova e insuspeita. Indefinível tal qual toda a nossa verdade. Percebam o personagem, observem a transmudação, ele é vivo, natural e se alimenta de frutas tão doces quanto a boa e velha maçã.

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Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

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