Cristiano Fretta

Estantes Vazias

Todos os amantes da leitura sabem que um dos poucos problemas que os livros podem nos causar é nos fazer compreender que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço. Tentamos, então, transcender essa lei: encontramos um cantinho para colocar mais um volume, deixamos outros sobre a escrivaninha, mais uns ao lado da cama. Quando nos damos conta, há livros dentro das panelas, debaixo dos tapetes, misturados às meias.

Na era das lives, principalmente durante o auge da pandemia, fomos atingidos em cheio pela visão das estantes de livros das mais diversas pessoas. Inclusive, houve inúmeras matérias em veículos de comunicação explorando as estantes de jornalistas. É claro que uma estante de livros é motivo de um orgulho que, muitas vezes, beira – e ultrapassa – as raias da vaidade. Aliás, em um país como o Brasil, sufocado pelas trevas por todos os lados, mostrar a todos que cultivamos o hábito da leitura pode ser compreensivelmente um ato de orgulho de que queremos nos gabar. Não, ter uma estante com livros não é pouca coisa neste país.

Certa vez, precisei vender minha biblioteca. Digo biblioteca pois ela contava com uns 1.500 volumes que eu, com certeza, não mais leria. Eu havia me mudado e levado o resto dos meus livros para a casa nova. Os volumes antigos estavam, racionalmente pensando, estorvando um precioso espaço.

No entanto, não há racionalidade que possa suprimir a perda de tanta memória afetiva – mesmo quando substituída por uma bela quantia. Demorei muitos dias para tomar coragem e encarar, na casa antiga, as minhas estantes vazias. Quando por fim tomei coragem e entrei na peça e vislumbrei as paredes vazias, foi como se eu de fato compreende-se as profundidades semânticas da palavra “ausência”. Era como se eu também tivesse sido trocado por dinheiro.

Fonte da imagem: https://pixabay.com/pt/photos/livros-livraria-livro-lendo-1204029/

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Cristiano Fretta

Cristiano Fretta é mestre em Letras pela UFRGS, músico, compositor e professor de Literatura e Língua Portuguesa em escolas privadas de Porto Alegre. É autor das obras "Chão de Areia", "Tortos Caminhos", "A luz que entrava pela janela" e "Crônica de um mundo ausente". Também colabora com as revistas digitais Parêntese, do grupo Matinal Jornalismo, Passa Palavra e com o jornal Extra Classe. Nasceu e mora em Porto Alegre

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