Largo da batalha II: uma outra versão
Série: Histórias de Arariboia
Confesso que o senso de pesquisador me leva a duvidar de tudo quanto é situação. Por outro lado, a veia de cronista conduz o meu discurso a se distanciar daquela credibilidade historiográfica necessária ao escritor. O que fazer, portanto, frente à batalha interior comprometedora, quando o texto passa ao largo do caráter científico? Não sei, juro que não sei, decido a me dar ao luxo de atirar contra o meu próprio pé. Porém, retorno aqui no intuito de lhe narrar nova versão sobre o Largo da Batalha. Acredite se for capaz. “Bora” conhecer mais essa, então?
Antes de embarcar no mar da oralidade, previno: “É preciso estar preparado. Alguém terá que preveni-lo. Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais os sentidos que o trouxeram até aqui”. A frase não é minha, pesquei da primeira página do livro Nove noites, de Bernardo Carvalho, um desses romances que se encaixam direitinho no quesito verossimilhança. Mas voltemos ao que interessa, falemos do Largo da Batalha e a sua ligação com os voluntários da pátria abandonados por aqui. Exato, isso mesmo, militares abandonados, deixados ao léu pelo governo da época. Você acha que aqueles soldados mutilados na guerra foram parar em qual município? Claro que vieram se fixar em Niterói, perto da capital. Inevitável. Necessário permanecerem próximo da sede do governo. Primeiramente, alocaram os nossos heróis feridos no quartel niteroiense da Praia Vermelha. Tempos depois, os mais desgostosos com o péssimo tratamento empregado no alojamento se refugiaram em Pendotiba. Acaso o leitor pergunte se é invenção, respondo: não sei, confesso não ter ciência absoluta do assunto. Vendo o peixe conforme o fiador. Pois foi o senhor Honório Buslan quem me serviu de fonte oral de informação.
— Rapaz, eu jurava que essa história ia morrer comigo. Quem se interessa por assunto de velho? Ainda mais sendo relato do idoso mutilado da perna que foi o vovô Pedro. Meu pai me contava essas coisas vividas pelo velho. A família Buslan, minha parentada, veio da Europa. Só tinha militar, bisavô, avô, meu tio também. Mas papai não. Papai nasceu dono de bar, igual a mim. Senta aí, professor Erick, o caso é longo — e ninguém quer saber disso além de você.
Bem, desnecessário afirmar, a narrativa me surpreendeu. O relato se mostrou mais sério do que pensei. Juro, nunca ouvi falar disso antes. E vamos ao caso:
Peter (ou Pedro) Buslan chegou da Inglaterra no intuito de engrossar a turma de oficiais combatentes junto ao Capitão Jacob Conrad Niemeyer. Exato, você já reconheceu o nome sugestivo, não é? Ele mesmo, primo do nosso querido arquiteto Oscar Niemeyer. Aliás, o Comandante Conrad foi engenheiro de profissão. Mas a sua função principal no Brasil foi oferecer apoio aos construtores de barreiras, pontes e albergues ao pelotão do bisavô do Honório. Sim, suporte técnico ao batalhão do também comandante Pedro Buslan. Dessa maneira, seguiram todos para o front na Guerra do Paraguai — e saíram vitoriosos após muitas baixas. Isso aí, vitória! Decerto já conhecemos bem a história do genocídio que dizimou mais da metade da população paraguaia. Aos vencedores… as medalhas, em nome do Duque de Caxias, o famoso Rambo brasileiro. Mas nem tudo foi tão bonito assim. Pois é, o outro lado da história está mais para drama que para epopeia. Negligência do Estado-Maior. Triste sinal, porque, após a guerra, lugares como Salvador, Recife, São Paulo e, principalmente, as ruas de Niterói recebiam “soldados doentes e mutilados egressos dos campos paraguaios, (que) mendigavam, provocavam desordens públicas e davam-se em espetáculos” (RODRIGUES, p. 5, 2009). Será que os ex-combatentes fariam tudo de novo se pudessem voltar no tempo? No caso do oficial Buslan, bisavô no nosso narrador, acho que não, duvido que repetiria o “feito” — e nem medalha ele ganhou. Não deu tempo, mandaram-no logo para Niterói. O líder de tropa perdeu uma das pernas devido à gangrena de certo ferimento de guerra. Já o consideravam moribundo no alojamento do Quartel da Armação, na Praia Vermelha, no Largo do Mouro, junto a mais de trezentos outros impossibilitados de lutar. Por causa de febre alta, desenganaram o ainda jovem oficial Buslan. Mas erraram os médicos, o guerreiro resistiu, safou-se o danado. Já com relação ao outro, o primo do Oscar Niemeyer, desse perderam o paradeiro. Verdade, sobre o Capitão de Engenheiros Jacob Conrad Niemeyer, jamais ouviram falar por aí de novo. O caso se desenrolou de modo a fazer Pedro (ou Peter) Buslan fugir do quartel da Praia Vermelha, alojamento da Armação. Sim, sumiu de lá, lançou-se pelas cercanias de Pendotiba porque soube de um grupo de ex-combatentes em situação similar. De acordo com os jornais da época, “esses homens perambulavam como indigentes por lugares um tanto quanto afastados do centro de Niterói”. Consequentemente o lugar passou a ser conhecido por Largo dos homens da batalha, daí para Largo da Batalha seguiu como questão de adequação linguística. Não acredita? Não lhe culpo, eu mesmo possuo cá minhas teimosias em crer nas “contações” dos moradores locais.
Enfim, reconheço que a verdade se perde entre contradições e incongruências. Tanta imprecisão na memória parece até novela televisiva. Somente rastros de errância. E, para ser sincero, bem provável que estas referências abaixo estejam costuradas pelos fios da oralidade também — e o verdadeiro largo da batalha se revele o próprio ato de escrever.
Referências:
Carvalho, Bernardo. Nove noites. São Paulo: Companhia das letras, 2006.
NOVAES, André Reyes. “Do Campo de Batalha para as Ruas da Capital”: Uma Litografia do Capitão de Engenheiros Conrado Jacob de Niemeyer. Revista Terra Brasilis: Revista da Rede Brasileira de História da Geografia e Geografia Histórica, n. 12, 2019. Disponível em: www.journals.openedition.org/terrabrasilis/5558 Acesso 14 mai 2020
RODRIGUES, Marcelo Santos. Guerra do Paraguai: Os Caminhos da Memória entre a Comemoração e o Esquecimento. 2009. 338 f. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.