Carina Lessa

A morte do artista

 

Todo mundo já passou uma noite sem dormir. Você pensa em reprimir as cores e fugir de si mesmo. Os olhos percorrem os braços, buscam uma estadia definida. A porta fica fechada. Os olhos percorrem os braços e você se atreve a ir para longe de si.

Desce do carro feito estrela de cinema, ainda não é a lágrima escorrida no camarim vazio. Caminha acenando para todos os lados, desperdiça sorrisos. Acende os holofotes. Cadê o tapete vermelho?

Queria aquecer os nervos.

Sobe no palco com convicção para receber o prêmio. As pulseiras estão brilhando.

Queria aquecer os nervos e não param de te perguntar sobre os tempos recentes. Como ainda são duas da tarde, resolve fazer um bolo. Eles dizem que a culpa é sua, passam correndo pela janela da cozinha, debocham arlequins e colombinas, lançam beijos e reverenciam o seu dia.

Sobe no palco com convicção. Guitarras explodem nos ouvidos.

Lançam beijos e reverenciam o dia. Como vocês podem ver através dos meus olhos? Quando foi que me tornei adormecido? Prefiro bater o bolo à mão. Observo as claras em neve e já tenho um novo semblante.

Sobe no palco, parece bom, mas acho que perdi alguma coisa.

Acham que deve falar sobre os tempos recentes. Que tempos, meu Deus? A clara em neve e não sigo a receita. Fico parado ali observando a consistência, as pequenas bolinhas explodindo tão levemente quanto as moléculas reprogramadas pela espinha afora.

Sim, sobe no palco e eu a vejo correndo num mergulho profundo, daqueles nos quais não imaginamos a morte do artista. Não é possível encontrar uma grande alma sem sentir uma profunda dor. Não são os poemas que eu choro, não são as coreografias que eu choro…

Mas quem quer falar sobre os tempos recentes?

Quero a alma que mobiliza o corpo.

Dou mil piruetas enquanto observo a janela e resolvo jogar a mistura na batedeira.

Quem observa o palco e pensa na morte do artista?

Ninguém moverá o corpo feito Patrick Swayze,  mas ninguém pensa no corpo morto do artista.

A  música toca. Eu tive os melhores momentos da vida, as mãos tremendo não puderam disfarçar. A música toca e estendo as mãos, quero entender a urgência do artista. Jennifer Gray estende as mãos. Um retrocesso invade a cena. Os gritos invadem o teatro. Coloco o vestido num piscar mágico. Se tive os melhores momentos, procuro a porta aberta tal qual me indicaram. Vejo o doce sorriso, a roupa preta, o salto fenomenal, o suor escorrendo.

Suba no palco? Cadê ele? Ninguém pensa na morte do artista?

O bolo já vai em massa comum. Untei a forma com manteiga e a coloquei no forno.

Ele só pode ser como o vento. Olho pela janela e acredito, eu vi a árvore balançando. Mas por que ninguém pensa no corpo do artista?

Ele passeou muitas noites ao meu lado. Quando olho no espelho, eu sou tudo que vejo, eu sei, não estou enganado. De alguma maneira, fico sem respiração. Não é loucura? Muitas vezes fui capaz de sentir o personagem respirando no meu rosto. Sim, o corpo do artista estava vestido e me deixou sem dormir. A criação não é minha, o personagem não é meu, mas eu só sei chorar a morte do artista. Ele não pode ser indigente. Olhe, Jennifer, você pode ver? Sinta a respiração no rosto. Aceite novamente a mão. Quem te segura a cintura?

O artista é como um vento. Deixe o cabelo balançar, sinta a fissura. As lágrimas só podem escorrer.

Olho pela janela, os arlequins me reverenciam. Olho o bolo assar em silêncio. Um pássaro grande gorjeia. Eu observo o pássaro com muita convicção. Não sei se ainda tenho insônia. Estaria acordada por muito tempo? Já são quatro horas da tarde. Terminei de lavar a louça suja há dez minutos. Quando terminei, sentei e observei o bolo no forno.

Sobe no palco, querido? Cadê você? Vejo os bailarinos, os cabelos anuviados… Cadê o artista? Ninguém o chamou?

O bolo ficou moreninho. Levanto sem ânimo.

Queria voltar a ver o filme, faço força de imaginação. Ninguém percebeu que eu não dormia.

O artista saltou do palco? Começo a ficar preocupado.

Consegui ver seus doces lábios sendo mordidos. Dança alegremente, gira num palco todo seu. Será? Ficarei nesse lugar, olharei pela janela, o pássaro levantará voo, o homem deitará para relaxar os músculos e não poderei deixar de pensar na morte do artista.

 

 

 

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Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

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