Carina Lessa

Destino ou São Tomé das Letras

(Texto publicado originalmente no romance Aborto)

O destino novo de Eduardo data de 2019, precisava tomar uma decisão. Apresentou-se, invadiu a narrativa de forma ousada e impertinente. Queria misturar-se aos ciganos. Sumira misteriosamente da antiga casa. Abri o espaço-tempo e, agora, ele vive por aqui. Talvez pudéssemos questionar tal empreendimento, um tanto cego para escritores realistas-naturalistas, concordo com Deus. Desde o início, não queria uma trama que dramatizasse a História. Abandono as coordenadas realistas e identitárias das últimas décadas? Não. Digo com precisão porque o movimento é descomprometido, apesar de assumir que os estilhaços históricos são inevitáveis. Observem: já não importa se Eduardo é mais ele ou ela. Deixemos que o momento lhe conduza a ação pelos gestos dos sentidos. Quero o seu corpo múltiplo e imortal. Está exposto ao experimento, foi o que me disseram. Tive de ter certeza.

A memória é costureira de patchwork, o gênero também. O corpo é multicultural e ecológico. Convoquei o Ney para ter a certeza de que Eduardo estava preparado, mal necessário. Cheguei a sonhar que Deus era um grande ouvido no qual eu me adentrava com medo, eu falava e as palavras não saiam. Mas enquanto caminhava pelo pavilhão auricular, mesmo sem som, ele parecia me escutar. Tudo estava escuro, do lado de fora e também no túnel. Somente o silêncio do breu era ouvido. O caminho era estreito e úmido. Segui a orientação e comecei a ouvir no último volume The Sound of the Silence, ele recomendara em 1970, não era o agora? A música estava intensa, sentia as ondas circularem em 8D pela cabeça. No túnel, o silêncio glorioso. Desejei então que a luz me rachasse os olhos, precisava acordar. Acordei. Nada de luz. Os olhos estavam abertos e a escuridão do quarto permanecia.

Narro os últimos acontecimentos, preciso voltar à cena dos ciganos. A mente estava exausta. Noites sem dormir, um dia inteiro de trabalho intenso e solitário no apartamento, acompanhavam-me os livros e a boa taça de vinho. As dores físicas eram intensas, não incomodavam. Eram companheiras velhas. A perna esquerda chegou a me oferecer a raiz elétrica, apalpei-a com calma. Resolvi que deveria seguir conselho amigo e conhecer São Tomé.

Considerava interessante a ideia mística de que a gruta do Carimbado levaria à Machu Picchu. Imaginava-me caminhando vagarosamente por entre as terras rochosas e descobrindo a existência de um Império Inca sobrevivente. Quando cheguei ao fim da tarde, o céu estava avermelhado. Caminhei à procura de um lugar no qual pudesse repousar e comer, até aquele momento não havia percebido que passara o dia todo sem petiscar amendoim ou azeitona. O álcool dilacerava as tripas tal qual os germes do conhecimento. Cheguei ao Bar do Cigano, dos mais conhecidos por lá. Descrevo o cenário pictórico pela aura da cidade, personagem de máscara cordial e encantatória. Quatro prateleiras eram repletas de cachaça dos mais variados gostos, as garrafas esvaziadas em diferentes níveis. Alguns filtros de sonhos dependurados pareciam servir de enfeite ao lugar altaneiro. Havia um filtro de barro, perguntei-me por alguns minutos se ele estaria repleto de água verdadeira ou da verdadeira água. Algumas pessoas espalhavam-se entre bancos, troncos e chãos. Eram moradores, hippies e turistas. Alguns riam relaxadamente. Eu ali, um intruso, sem lugar, curioso.

Estávamos em maio. Descobri pela fala de alguns turistas que haveria de começar a festa de Santa Sarah. Não conhecia nada sobre cultura cigana, somente os clichês que nos são oferecidos ao longo da vida, além da experiência citadina das famosas cartomantes e leitoras de mãos. Sempre envolvidas em promessas de fortunas arrematadas por trágicos acidentes de percurso. Entendam: não será o caso de Eduardo, não me interessam tais leituras da vida, deixo as reservas já exploradas por amigos em outras encarnações.

Trago a surpresa, estou à deriva. Também não sei se estou com os tropicalistas, já não penso em jogar moral ou politicamente com a arte. Já não penso. Caminhei até o local mencionado, outro bar. Não me vem o nome, somente as sensações físicas que me partiram. O fato é que desde a infância me encantavam as vestes, as cores, o barulho das moedas.

Acompanhei a dança em homenagem à santa, confesso-lhes novamente não ter total conhecimento sobre o seu significado. Informei-me depois. Santa Sarah Kali é a padroeira das grávidas e dos desesperados. Eu vos digo: é a mulher que trouxe Jesus ao mundo dos homens. Legado da igreja católica, fora escolhida como objeto de devoção da comunidade migrante. Sarah acompanhou as três Marias quando colocadas em um barco sem rumo para que morressem. Kali significa negro em hebraico, carregara também na cor as durezas ciganas até o momento em que, acolhida pelas Marias, pegou nos braços o corpo frágil do menino Jesus, sendo a responsável pela limpeza e pelo acolhimento do recém glorificado com as vestes da morte. Toda mulher cigana convoca seu auxílio na hora do parto ou quando não consegue engravidar. Por que santa dos desesperados? Sarah estivera presente no nascimento e na crucificação de cristo. Morte e vida. Representa o ciclo fechado na dor dos viventes.

Mulheres e homens dançavam. Esvoaçavam saias vermelhas, enquanto tocavam os instrumentos de corda e percussão. Senti na pele o estalar do incenso pelos ares, sobreveio-me um medo terrível. Percebi que ainda não comera. Olhei os ponteiros do relógio, não me lembro de constatar horas, minutos ou segundos. Estava sonâmbula. Questiono-me o porquê de ter sido projetada a dança dos sete véus, não vi a transição no período festivo de São Tomé. Eu não queria parar de observar, estava vencido. Precisava ter coragem de voltar à casa. Uma mulher surge solitária nos apresentando os véus nebulosamente.

– Deixe ver os olhos.  – a frase explodiu nos meus órgãos.

 

Vi os montes desenhados na escuridão, sombreados pelo céu azul escuro e pela fumaça das nuvens. Julguei que ainda podia caminhar até a Casa da Pirâmide, não sabia qual direção tomar. Os véus estavam lançados. Um deles saiu dos seios fartos, passou pelos cabelos longos e lisos, voou. O segundo era abocanhado pelas duas mãos em braços esticados enquanto a dançarina deslizava os pés descalços para frente e para trás num movimento intenso e ondulante. A dor nas vísceras me jogou em movimento de facada, não havia atendido ao sobreaviso. Não lembro de pessoa comprometida em me aparar. Caminhei. Julgo ter ouvido sinos. Apenas algumas luzes se estendiam pelos caminhos. A perna fraquejou em câimbra lancinante. Estava exaurida. Num clarão, abriu-se o cinema mudo. Seres humanos, desprovidos de máscaras que lhes incutissem gênero, eram conectados pela força da atração eletromagnética. Num empuxo rápido, como em imagem antiga de VHS, os corpos eram acelerados em compartilhamentos infinitos de energia. Desenvolviam-se espiritual e fisicamente. De repente, em movimento fotográfico, pessoas felizes, de diferentes culturas e etnias, eram lançadas em conexões infinitas e, num segundo, transformaram-se num bolo de massa fundido performaticamente. Restitui-se uma gigantesca luz em círculo contraído num buraco negro sem fim.

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Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

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