Carina Lessa

Fisiologia das paixões

 

– Tenho estudado a fundo a fisiologia das paixões e estou certo que o coração está no estômago quando não está na algibeira.

Há apenas um espaço vazio. Dentre todas as probabilidades, aqui em cima eu estou. Do alto, aprecio as ruínas onde tudo é deserto. Estou respirando arduamente, busco pelas extremidades viajar nas ondas possíveis do universo. Abandonei as malas e me entreguei à fumaça das nuvens.

Seria pretensão explorar o universo? Abandono montanhas e rios, toda a paisagem. Daqui aprecio o estado natural das coisas. Expando-me enquanto observo as revoluções físico-intelectuais. Que ideia revolucionária caberia no intervalo entre as montanhas e a mente? Se estudo a fisiologia das paixões, eu não posso ser o homem que me entregam, o bolso fica vazio.

Em perfeita independência, a rede de nutrientes anuncia memórias e sentimentos. Façamos a digestão.

A montanha encoraja o olhar pela varanda do apartamento. As árvores aparecem frondosas nesta noite pouco afeiçoada ao inverno. A taça de vinho quase vazia sente escorrer o resquício de saliva avermelhada. Está sentada em mesa de espera, sabe que será recomposta muito em breve por mãos amigas. Velhas companheiras de luta, trancam o embate da ilusão do espelho.

Ouço o trompete da partida. A chuva de raios trouxe o acre direto do estômago. As purpurinas nos olhos vão carregadas de coroas de flores. Suba o tom! Suba o tom!

Na sala, os corpos haviam se encontrado. Os lábios mal se roçaram e os órgãos explodiram em vasos demasiadamente dilatados. As palavras eram nervos naquele silêncio. Nervos tensos numa coleção expressa de imagens guardadas. Os amantes não eram palavras. Os músculos estavam carregados de promessas, mártires do gozo. Não percebiam os corpos ainda protegidos pelas roupas, a eletricidade intensa fazia dormir os corpos de tal forma que já entendiam-se nus. Faltava o ar. E quanto mais faltava o ar, mais os espirais sôfregos conduziam a força daquele beijo. Bastava. A balança pendia de um lado a outro comendo tudo que era força centrípeta. Decoravam cada respirar no compasso da musicalidade das energias. Mais e mais contraturas perfeitas e imperfeitas manifestavam a inevitável mortalidade dos corpos. Sabiam aos trópicos. Mudavam o posicionamento do sol. Podiam modificar os dias e as noites. Aprenderam a ser viajantes cegos em terra de espionagem.

Os corpos são nus. Não há o som, a caixa de voz fora rompida. As salivas espalham palavras nos corpos contraídos. Os espasmos transferem os órgãos permissivamente. Integram-se.

Na morte, eles se acariciam.

As folhas das árvores não caem no inverno. Se caíssem, poderia correr, descer os andares do prédio. Não usaria o elevador. Correria para sentir o vento. Pegaria a folha e deslizaria os dedos. As enervações lembrariam o órgão entranhado em noites de viagens sombrias.

Não caíram. Daqui, vejo ao longe o futuro embaçado. A vida parecia provir de oceanos primordiais. Como isso aconteceu, não sabemos. Diante dos efeitos, reprogramamos o DNA. O voo espacial me informa as possibilidades novas. Enquanto tudo é ainda, enquanto assisto às possíveis revoluções, me assento.

Os corpos são areias movediças.

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Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

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