Carina Lessa

“(diga a ele que você vale ouro!)”

(Foto: Clarice Lispector por Maureen Bisilliat em agosto de 1969. Acervo IMS)

A crônica é nova. Não vou falar do Brasil nem do Rei Nabonadius. Aliás, devo dizer, estou flanando no “Cemitério dos Mortos-Vivos”. Denuncio-me. Acabo de publicar um livro, mas o meu filho é um natimorto. Eis a miséria da alma humana. Não sou capaz de pôr um filho pronto e livre no mundo.

Não sei se seria carioca (ou mineiro por ascendência). Nem pensei em fixar origem aos personagens ali presentes. Um amigo querido, já importante crítico contemporâneo, me pergunta: “Como você pode fazer um romance abrindo mão de fazer um romance?”. Eu lhes pergunto: “Como?”

Sou primitiva. Talvez alguns associem o significado à colonizada. Aceito. Eu só queria dizer que re(aprendi) recentemente com Vandana Shiva que muitas vezes devemos lutar contra a distorção da origem das palavras. Elas devem ser identitárias quando me convém. Ressalto: sou primitiva e gosto que me preparem a terra.

Chego, enfim, ao ano de 1977. Mais precisamente ao dia 2 de fevereiro. Era uma quarta-feira. Iemanjá, particularmente bela, oferecia-se majestosa. O encontro com o sol talvez pudesse oferecer à Clarice um sopro de música. No dia anterior havia comparecido aos estúdios da TV Cultura, em único registro audiovisual ao qual temos acesso. Introspectiva, nos afirmava que normalmente era feliz, no entanto se encontrava triste, estava cansada. Imagino então Clarice se refazendo no dia 2 de fevereiro. Sentada à beira do mar, sentindo o vento, lembrava-se de Lóri.

 

“O sol se abre mais e arrepi-a ao secá-la, ela mergulha de novo: está cada vez menos sôfrega e menos aguda. Agora sabe o que quer: quer ficar de pé parada no mar. Assim fica, pois. Como contra os costados de um navio, a água bate, volta, bate, volta. A mulher não recebe transmissões nem transmite. Não precisa de comunicação.”

Caminha alegre sabendo que “a alegria é uma fatalidade”.

Depois de bons minutos, atravessaria a rua, uma das últimas vezes em que almoçaria em mesa de restaurante? Entraria ela no tradicional La Fiorentina? Deixo em suspenso. Paro. Quero dizer a vocês sobre uma amiga de Clarice. Nos últimos meses de vida da escritora,  a jovem moça atendia o telefone adivinhando o pedido em cada nota do paladar acurado da nossa quase centenária.

No dia 2 de fevereiro de 1977, Clarice escolhe a amiga feito pedra preciosa. Peguem do fragmento que lhes ofereço:

(“Diga a ele que você vale ouro!”)

Acostumada que sou a cavernas, nunca me saltou aos olhos tal metáfora. Jogo luz a  ensaio recente no qual o autor nos lembra as anotações de Caminha a Dom Manuel. Um dos indígenas coloca as contas do rosário no pescoço e Caminha logo afirma que eles não haveriam de levá-las. Os navegantes não retribuiriam o ouro oferecido pelos colonizados (uso propositalmente o termo, já agora (re)ssignificado em retorno à origem). Mal sabia Caminha que os colonizados criam.

Não estou acusando Clarice Lispector, autora da dedicatória. Sabemos como são as palavras. Escrever é difícil, “é duro como quebrar rochas”. A doce Clarice sabia quebrar rochas. Palavras e seres humanos. Ao primeiro olhar descobria suas pedras preciosas. Escolheu a amiga no restaurante por anos. Dedicou-lhe livros com as palavras mais sinceras de quem sabe amar. Respondo à Clarice:

– Não se engane, minha amiga. Ele sabia que ela valia “ouro”, não há outra razão para prendê-la o colonizador (uso o termo também fora da origem).

A crônica é nova, já disse.

Terça-feira à noite estive na semanal aula de Teoria da Literatura. Falávamos sobre o pós-modernismo, em extensão aos conceitos de Derrida, chegamos à Clarice. Wellington, meu adorável aluno conservador[1], sempre muito reflexivo e condutor de bons debates em sala de aula, me apresenta encantadíssimo três livros de Clarice com os quais acabara de entrar em contato. Três belas dedicatórias. A conversa vinha calorosa e Clarice nos surge selvagem. Wellington nos relata o encontro promovido a partir do carinho que dedica cotidianamente a duas senhoras vizinhas suas.

As almas tímidas (ou avexadas) se encontram nos livros. Pego de relance a crônica recente de José Castello na qual relata a amizade. Ao ler Clarice, ainda jovem, adoece. O médico declara à mãe: “Não se preocupe. Vai passar. É só uma paixonite”.  Aprendeu sobre a “Felicidade Clandestina”:

“Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi não saber onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade.”

A amiga guardou por anos os livros embrulhados em doces palavras. Entre caminhos da vida, espontaneamente, meu aluno pôde nos oferecê-las. Deixo-lhes em suspenso a narrativa que se expandirá quando da comemoração do aniversário da autora de A hora da estrela.

                – Sim, aquela sua[2] menina perdida no mundo feito Macabéa “vale ouro”.

Aos alunos de Teoria da Literatura dedico aqui o abraço pelas deliciosas conversas, em “modo quarentena”, representando todos os  que aceitaram desbravar novos percursos a partir das minhas perguntas.

Amanda, Ana Carolina, Bruno, Caroline, Cristiane, Dafne, Felipe, Geovanda, Joyce, Lays, Luísa, Mariana, Michele, Pedro Henrique, Vitoria, Wellington.

 

[1] Não encontrem aqui tom irônico. Recomendo ainda a leitura do trabalho empreendido por José Carlos de Azeredo sobre o uso do aposto, de comportamento muitas vezes nada acessório.

[2] Com a licença do possessivo, peço ao professor Antonio Carlos Secchin.

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Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

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