Carina Lessa

Novo Império

 

As crônicas são velhas. Achados recentes me dizem que o rei acredita ser um bode capaz de comer grama. Daqui prefiro observar as riquezas naturais. O rio vai arrastando tudo. As cascatas deslizam satisfazendo os olhos enquanto árvores frutíferas desenvolvem novas sementes. Os jardins estão suspensos. Observem a grande construção e os poços gigantes. Molhem os pés e elevem as palavras.

O rei escondido entrega ao filho o governo de tudo. Em pleno paraíso afirma:

– Eu decreto: se você não vê, não existe. E tenho dito. – a grama escorrendo babada em canto de boca.

Os súditos cultuando o Deus popular.

E, como nos escritos dos antigos papiros, os habitantes curvaram-se beijando seus pés. Saudaram-no. E, finalmente, fez-se a paz entre os homens de boa vontade. Sua reputação goza de grande êxito. O poderio militar cada vez mais se expande. Eis o fim da colônia e o estabelecimento do novo império. Diga ao povo que fico, ele parece nos dizer.

Spencer, à época dos movimentos de independência, nos avisou que “a transformação é a lei geral do universo”. Os homens que promoveram as grandes revoluções não imaginavam ser “decapitados” ao final de breves gerações e organizações políticas. No mundo orgânico e animal, as estruturas mais simples e delicadamente pequenas se ajeitam em nossas observações cotidianas. Os jardins vão se arrumando em múltiplas evoluções inacabadas. Em tudo germina a terra. Diz ele que a sociedade assim também se expande. Num dado momento histórico eclode tão profundamente o desdobramento das “novas” espécies que ninguém estimaria possível enxergar ou fazer tal julgamento.

Nas tribos mais rudimentares, oferece Spencer como reflexão, os chefes, assim como os súditos, constroem a própria morada, produzem os próprios utensílios, buscam os próprios alimentos. Não se diferenciam dos outros membros da tribo. No mesmo caminho, as tribos, confrades, mesmo depois de guerras e conquistas, se harmonizam numa grande sociedade, sem que um déspota surja tal qual czar a acabar com a festa.

Bem, as crônicas são velhas. Um rei se alimenta de grama seca.

As novidades partem da musicalidade no condomínio. Dona Emilza tem o uniforme suado. Sorri. Esfrega as grades que vão ficando brancas enquanto a máscara desce ao queixo, precisa respirar. Há uma goteira, depois da chuva, no reboco mal feito. A britadeira enuncia a quadra de futebol prometida. Caminho cansada. O suor também escorre e já tenho um bigodinho escondido no tecido preto. Tentei sorrir de volta, com os olhos, para Emilza. Seu José vai arrastando a lixeira rampa acima, canta algum samba que não pude identificar. De longe, tive a impressão de ver um gambá, os bichos ousam se apresentar por aqui. Há de ser a coragem de quem resiste em desbravar novas terras.

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Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

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