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Suplemento Araçá – Vol.01 – nº01 – Dez./2021 – Artigos & Ensaios – “DOM SEBASTIÃO, O REI DO BRASIL” – Lívia Penedo Jacob

ISSN: 2764.3751

DOM SEBASTIÃO, O REI DO BRASIL
Lívia Penedo Jacob

“Ê rei, rei Sebastião, se desencantar Lençóis, vai abaixo o Maranhão”. Cantado a muitas vozes, o estribilho segue a cadência percussiva dos agogôs, cabaças e triângulos durante o ritual de “tambor de mina”, religião afro-brasileira que encontra maior expressividade entre os maranhenses. Segundo alguns devotos, na Ilha de Lençóis, localizada no litoral oeste do estado, viveria “encantado” o rei português Dom Sebastião (1554- 1578), aquele que supostamente desapareceu aos vinte e quatro anos na Batalha de Alcácer Quibir, Marrocos. Campo para inúmeras pesquisas sobre o tema, o caso figura como um dos muitos exemplos da sobrevivência do mito sebastianista em solo brasileiro.

Mas quem foi o homem que partiu do além-mar para o além-mundo? Difícil precisar. Há tantas versões de Sebastião quanto os tempos-espaços que atravessou, seja enquanto encarnado, seja como entidade espiritual. Da figura histórica, tudo indica que estava fadado a virar lenda; pois, por nascer em dia santo, seu nome de batismo difere da tradição monárquica. Entre tantos nobres chamados João, Manuel, Afonso, um único Sebastião se sobressai. Inconfundível, portanto, tão logo sobrevive, passa a ser chamado “o desejado” porque do pai não se esperava uma prole numerosa. Previsão acertada, Sebastião fora, de fato, herdeiro único de um rei que morre aos dezesseis anos, sem o ver nascer.

Órfão de pai, a mãe, vice-rainha da Espanha, o deixa sob os cuidados dos avós portugueses. Cresce, pois, sem muitos afagos, submetido desde cedo à rígida educação jesuítica, provável origem de suas fantasias de templário. Impossível medir a influência do clero sobre a mentalidade de Sebastião; certo, porém, que tenha se deixado tomar pelo fanatismo religioso. Afinal, empreender uma cruzada contra os mouros, àquela altura da história, soava um blefe desmedido aos ouvidos dos outros monarcas europeus. Contando somente com o apoio do árabe Abdallah Mohammed II – movido pela vingança contra o tio que lhe usurpara o trono – Sebastião se atira na direção de alfanjes e cimitarras, armas empunhadas contra si não por nobres mouros, mas por hordas do povo, que o destrincham pensando se tratar de um soldado qualquer. Sob o calor da África, atirado ao lado de tantos outros cadáveres cristãos, dizem que o corpo deteriorado de Sua Majestade demorou a ser reconhecido pelos servos lusitanos, refratários em admitir o desatino. Morto, o rei estava nu: despido, desnudava também as fraquezas do reino, cuja baixa contabilizava oito mil mortos e quinze mil prisioneiros.

Ceifava, ainda, a soberania de uma nação. É que, não tendo deixado herdeiros, seu tio, Filipe II da Espanha, unificou as coroas dois anos após o fatídico episódio. Da decepção gerada pela ascendência do país vizinho, surgem boatos de que Sebastião estava vivo e retomaria o trono. Embora a passagem do tempo comprove a falácia dessa teoria, ainda hoje ela resiste entre os lusitanos, mais como anedota do que como uma crença propriamente dita. É o que se nota durante visita guiada ao Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa, onde jaz o “adormecido”. O benefício da dúvida vira atrativo turístico, ficando a critério dos visitantes acreditarem ou não na história oficial, conforme sugere uma lápide, onde se lê: “Se é verdade o que se diz, guarda-se neste túmulo Sebastião, a quem a morte prematura levou nas plagas da Líbia. Não diga que se engana quem crê viver o rei. Pela lei (de Cristo) para o morto, a morte é como a vida”[1].

O citado epitáfio ganhou polimento poético pelas mãos talentosas de Afonso Lopes Vieira (1878-1946), na obra Em demanda do Graal (1922):

 

“Se é vera a fama, aqui jaz Sebastião,

Vida nas plagas de África ceifada.

Não duvideis de que ele é vivo, não!

A morte deu-lhe vida ilimitada.”

 

Nessa versão, chama a atenção um aspecto reflexivo da mitologia sebástica: se em vida o rei foi responsável por uma das piores tragédias já ocorridas no país, a crença popular o redimiu, ao forjar a esperança do retorno. Parte da transmutação do fracasso de Dom Sebastião em folclore se deve à cultura escrita europeia, mas não apenas. Para entender esse fenômeno e sua posterior expressão na oralidade brasileira, retomo um dos primeiros relatos literários sobre o fato histórico, assinado pelo jesuíta Luís Pereira Brandão, que acompanhou Dom Sebastião em Alcácer Quibir. Testemunha ocular dos eventos, Brandão escreveu Elegíada (1588) quando ainda se encontrava prisioneiro dos mouros. O poema épico de 18 cantos narra os malogros da empreitada e confirma a morte de Sebastião; contudo, a falta de talento do autor fez com que a obra caísse no esquecimento, eclipsada por outras expressões mais qualificadas, sobretudo aquela produzida por Gonçalo Annes, o Bandarra (1500 – 1556).

Sapateiro nascido na Villa de Trancoso, região central de Portugal, Bandarra era um homem de talento. Conhecia em minúcias inúmeros textos religiosos, provavelmente se inspirando nas profecias de Santo Isidoro de Sevilha para produzir seus próprios “vaticínios”. Afinal, a ideia de um rei “encoberto”, predestinado a dizimar os otomanos e instaurar uma monarquia cristã universal, aparece primeiro em Isidoro, assumindo nas Trovas (1644) de Bandarra contornos mais líricos. A popularidade dessa obra se deve, logo, ao engenho do autor, que dispôs a composição em quadras de versos simples, facilitando sua circulação oral. Após a unificação ibérica, as Trovas, já conhecidas do grande público, se associam à ideia messiânica de restauração do império, virando matéria-prima para especulação sobre os rumos políticos do país.

Dentre os pensadores influentes que fizeram uso da obra de Bandarra para este fim figura Padre Antônio Vieira (1608 – 1697). Autor de brilhantes sermões, chama a atenção aquele dedicado a São Sebastião, proferido pelo jesuíta em 1634, na igreja baiana erguida em devoção ao santo. Sobre o canonizado, o texto diz que encobriu “a realidade da vida debaixo da opinião da morte”, enganando, dessa forma, os soldados romanos e dando continuidade à sua missão evangelizadora. A analogia do santo com o rei, conquanto instrumento retórico de convencimento, acaba compreendido de forma literal pelos brasileiros, crença que, em certos locais, sobrevive nos dias de hoje. Também porque Vieira defendia ser Dom João IV (1604 – 1656) o “encoberto”, fica explicado que seus fiéis tenham assimilado mais a potência espiritual de Sebastião do que a política, associando-o ao santo milagreiro e enxergando-o como baluarte do “Quinto Império de Cristo na terra”.

Com a Restauração (1640 – 1668) da soberania lusitana estabelecida pelos Bragança, a memória da Batalha de Alcácer Quibir enquanto história e o ideal do príncipe regente “adormecido” desaparece por completo nas colônias. O sebastianismo brasileiro, por isso, guarda pouca semelhança com o movimento de igual nome desenvolvido na antiga Matriz. Lucette Valensi argumenta que nos trópicos houve uma maior folclorização do rei, que ora é visto como um cavaleiro arturiano, ora se confunde com o próprio messias bíblico. Outrora uma bandeira levantada pelos jesuítas, no Brasil, Dom Sebastião vai se descolando de suas origens, na medida em que passa a representar a insurgência contra o controle estatal e não a sua manutenção. De guerreiro passivo, o soberano se transmuta em símbolo da resistência à opressão dos grandes proprietários rurais, tal qual testemunham diversos movimentos sociais ocorridos em finais do século XIX até meados do século XX, dentre os quais a Guerra de Canudos (1895-1898) é o exemplo mais notável. O “Quinto Império” anunciado por Bandarra se confunde tanto com a percepção bíblica do Apocalipse como com a “terra sem males”, crença guarani segundo a qual existiria um lugar alheio a doenças, fome, peste ou dor. Desaparecido por mais de quatrocentos anos, Sebastião, enfim, ressurge meio a um povo miserável e iletrado, tornando-se arauto de um “destino melhor”.

É verdade, portanto, que o sebastianismo ganha força social no cenário brasileiro quando praticamente está extinto em Portugal, onde a ascensão dos movimentos republicanos, em meados do século XIX, transformou Sebastião em símbolo de um regime decadente. Eis que surge o termo “sebastianismo”, figurando nos dicionários lusitanos como sinônimo de atraso e saudosismo. O “desejado” dá lugar ao “lunático”, o “encoberto” vira um “egocêntrico”.  Essa degradação da figura histórica culmina em sua redução a “mito”, isto é, à mera “literatura”.  Por ironia, o desprestígio alça o “Venturoso” à imortalidade, ao consagrá-lo topos literário nacional, tal como imaginado por Fernando Pessoa (Mensagem, 1934), Lobo Antunes (As Naus,1988), Natália Correia (O Encoberto,1969), Eça de Queiroz (A cidade e as serras,1901), dentre tantos outros.   

Do lado de cá do Atlântico, o rei é protagonista do cancioneiro oral, especialmente na costa litorânea que vai do Piauí ao Pará. Na já mencionada Ilha de Lençóis, no Maranhão, não são poucos os que o viram, ora sozinho, ora junto às suas três filhas: Mariana, Jarina e Rosalina. Dizem que por lá faz aparições esporádicas nas dunas desérticas, geralmente a cavalo, a espada embainhada, uma imagem cuja descrição nos remete ao nordeste marroquino, onde fora visto pela última vez. Nas noites de 24 de junho, o rei aparece na forma de um touro negro que, reza o mito, se algum dia for desafiado e ferido na testa, onde carrega uma estrela de prata, a cidade de São Luís afundará, fazendo emergir o Reino de Queluz, Reino Encantado de São Sebastião.

É possível que a longa permanência dos jesuítas na região, bem como as semelhanças geográficas da ilha com o norte da África tenham influenciado para que Sebastião fizesse dali sua morada. Mas só as cosmogonias africanas (jeje e nagô) e indígenas (guajajara) explicam como o monarca se tornou um encantado, categoria das pessoas ou animais que “viveram, mas não chegaram a morrer, sofreram antes a experiência do encantamento e foram viver no invisível”, segundo nos conta Luiz Antonio Simas (2019, p.45). Pensamento, por sinal, demasiado lógico: se Sebastião não morre e tampouco retorna à Portugal, a única explicação possível é que tenha mesmo se encantado na África, chegando ao Brasil, quem sabe, infiltrado em um navio negreiro.  O rei se sincretiza na cultura hibridizada da colônia, para ganhar novos mundos, garantir sua imortalidade e lutar em batalhas outras. Talvez aí esteja, na verdade, a maior diferença entre Sebastião, o brasileiro, e Sebastião, o português. Em Portugal, o “encoberto” projetou o retorno a um passado glorioso; no Brasil, virou expressão de desejo do amanhã. Lá é saudade enquanto “presença da ausência”; aqui vira “ausência da presença física” porque “Presença etérea”, visível aos que têm “olhos pra ver”. Ao se libertar dos jesuítas, Sebastião concretizou seu sonho se coroando, enfim, imperador do Quinto Império.

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REFERÊNCIAS

BESSELAR, José Van Den. O sebastianismo: história sumária. Lisboa: Instituto de cultura e língua portuguesa, 1987.

MACHADO, Roberto; BAIANO, Paulo. A lenda do rei Sebastião: registros sonoros do Maranhão. Recplay: São Paulo, 1999.

SARAIVA, A.J.; LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Editora, 2005.

SIMAS, Luiz Antonio. Pedrinhas miudinhas. Rio de Janeiro: Mórula editorial, 2019.

VALENSI, Lucette. Fábulas da memória. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.

VIEIRA, Padre Antônio. Sermões. Erechim: Edelbra, 1998.

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[1] Tradução minha do latim original: “Conditur hoc tumulo, si vera est fama, Sebastus, quem Tulit in Libucis mors properata plagis. Nec dicas falli regem qui vivere credit. Pro lege extincto mors quasis vita fuit.”

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Lívia Penedo Jacob é Doutora em Teoria da Literatura pela UERJ com mestrado em Linguística pela Puc-Rio.

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