Carina Lessa

“Mário de Alencar leitor da peste nos homens”

A Antonio Carlos Secchin

Imagem disponível em: https://steemit.com/spanish/@liuke96player/un-breve-vistazo-al-mundo-cuantico-y-al-gato-de-schroedinger

“Era quase ininterrupto o movimento de feretros; e o medo e o susto permanentes acordavam o egoísmo. Pois que era difícil, se não impossível, atalhar a marcha da peste, a defesa individual e instintiva redobrava, amortecendo a compaixão, a solidariedade moral e até o mesmo sentimento de amizade e parentesco. Cada qual pensava em salvar-se a si próprio, e como a simples presença de um pestoso era ameaça do perigo, abandonavam-no logo ao primeiro sinal da moléstia os parentes, os moradores da casa e os vizinhos”.

O fragmento acima pertence ao conto “Morto Vivo”, de Mário de Alencar, que este ano completa centenário de publicação. Ainda a poucos passos da gripe espanhola, o conto narra o caso de Gonçalo, um rapaz de dezoito anos, que pega a febre amarela na epidemia de 1840. Volto a Aristóteles para ensinar sobre os nossos dias, porque assim o próprio Mário nos convoca já no primeiro parágrafo: “Tudo pode acontecer, até um morto vivo. O ponto está em que os extremos opostos se harmonizem juntos em aparência do verossímil, que é toda a nossa verdade”.

O primeiro convite que a pandemia do Covid-19 me faz é sobre a nossa condição de mortos vivos. Sempre acreditei em tal premissa, o mundo como uma caixa de  schrödinger[1]. Você caminha pelos muros humanos condicionado às verdades pré-fabricadas e de repente lhe oferecem a aparência. Provocação instintiva, relação de amizade (ou inimizade) entre os corpos. Há de se ter paciência com a verdade de sobrevivência dos outros, disseminam pequenas gotículas de veneno (ou de antídoto) numa relação performática ao “primeiro sinal de moléstia”. Não há novidade. Mário de Alencar foi muito assertivo ao nos apresentar a peste.

Caminhemos. A peste de Mário é tão elucidativa quanto a de Camus. Enuncia o “droit de glaive” que Mbembe desenvolve a partir de Foucault[2]. Há uma violência política não só por vias estatais, mas também por microrrelações de poder – seja no hospital ou na casa. O corpo da peste é urgente, está em estado de putrefação. Quem a viu de perto sabe. O narrador Alencariano presume “que muito corpo se enterrou antes de realmente morto”. Enterram-nos antes mesmo da peste, o que há de se fazer em tempos sombrios?

Gonçalo, personagem principal, apresenta-se como um caso interessantíssimo. Os parentes, amigos e namorada esqueceram de si mesmos e conservaram o defunto na casa por dez horas – antes de ser levado ao cemitério. Esperança de salvação. Um bom amigo encontrou-o tão corado que intercedeu para que não fechassem o caixão até a hora do enterro. Gonçalo fica em transe enquanto retoma o “conhecimento de si mesmo e das circunstâncias estranhas em que se achou”. Ele não percebia onde estava e precisava fugir do assombroso lugar em que se encontrava. Assim me parecem os pacientes graves em tempos também de Covid (ou de renovação em virada de século).

Há um movimento de resignação diante da pandemia física ou política. Se não há relação amorosa com o corpo, ressaltando-lhe os traços de vivacidade, esquecemo-nos do espelho. Lembro de Foucault quando ressalta que a palavra corpo em Homero retoma somente o cadáver. Não havia uma palavra na Grécia para definir a integridade do corpo. A ausência do espelho não assegurava o renascimento. O narrador ressalta: “Via apenas a faixa pardacenta do caminho, mas este mesmo confundia-se em manchas que lhe turvavam o olhar. Circulando os olhos para resolver-se, reparou no enxame de fogos fátuos: uma multidão infinita de luzes, que ao em vez de clarearem, tornavam ainda mais negra a terra e o espaço, como nas noites estreladas. Cuidou a princípio que fossem pirilampos, como os que ele vira no campo em noites de verão. Reconheceu porém que não eram, pois não esvoaçavam acima e abaixo; nem apagavam e reacendiam os lumes”.

O caso aparentava coloração de milagre. Exceto pelo fato de que não havia alguém para oferecer a verdade dos pirilampos a Gonçalo. Mesmo os olhos lançados posteriormente insistiam em espanto. Verrumavam-no a carne. Escolhiam-no morto. O paciente da peste ou o vivente da atualidade quase nunca tem quem os guie. Vivenciam a história. Estão abandonados em função da defesa corrosiva da individualidade. Os pirilampos se apagam no momento em que arremetem o corpo para fora da cama. Pergunto-me, tocada pelas palavras finais do conto de Mário, quantos cadáveres não são produzidos diante do comprometimento inequívoco dos seres humanos com “a mesma vida” regrada pela aparência de morte que nos oferecem. No conto de Alencar também há valas abertas e corpos empilhados. Havendo sorte, antes mesmo da verificação da morte, há muitos casos de benzeduras. Reza-se a missa do padre Paneloux, em Camus, que nos oferece a peste como castigo.

[1] Experiência divulgada pelo físico Erwin schrödinger, na qual um gato é fechado em uma caixa de forma a estar vivomorto. O experimento questiona por meio da mecânica quântica a natureza do observador e da observação.

[2] A expressão, a partir do conceito de necropolítica, indica o direito pretenso a matar e, mais ainda, a expor os seres humanos a situações extremas de sobrevivência.

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Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

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