Cleia Nascimento

Sorrisos

"Sentimentos da Quarentena"

 

Foto da autora

Neste período de quarentena, trancados em nossos lares, vivemos sentimentos novos e distintos. É tempo de muitas reflexões, ao voltarmos  o olhar para nós mesmos, a respeito da nossa existência como seres humanos, da relação com o outro e  da nossa capacidade de reinvenção. Compartilho hoje com vocês um pequeno poema e um texto em prosa que abordam essa temática. Espero que gostem!

Sorrisos

Sorrisos discretos,

brancos, vermelhos,

azuis, cobertos.

Sorrisos amarelos,

floridos, estampados,

verdes, pretos,

de muitas formas desenhados.

Os autênticos

estão escondidos,

possuem as mais belas cores,

personalisados,

às vezes incompreendidos,

revelam na alma

dores, amores…

80 Segundos

E me pego fechando o vidro do carro em poucos segundos. Literalmente no automático, como reflexo da percepção de um vulto com aproximação iminente. Avisto, através vidro, aquela imagem que vai me acompanhar por muitas horas, talvez  dias, meses ou até mesmo por anos… Uma senhorinha magra, com sua máscara estampada no queixo. Usava o pedaço de tecido do modo como escutamos médicos e autoridades a todo momento na televisão reprovarem. Ela segurava firme uma pequena caixa de mariolas, daquelas fininhas e pretas, as melhores.

Meu coração bate forte, acelerado. Fico observando aquele ser humano, em torno dos seus setenta e tantos anos, dando meia volta, após notar minha impensada ação. Ou teria sido pensada, apesar de muito rápida?  Pois o medo, instalado no nosso subconsciente, nos condicionou, durante todos esses meses de pandemia, ao afastamento social. Nesse momento, me interroguei, como quem um dia tivesse que ter respostas para justificar esse comportamento, que considero horrível, talvez no juízo final, quem sabe. Por que fiz isso? Justo eu, que sempre tive o hábito de deixar moedas na marcha à ré propositalmente? Assim, facilitava a rápida compra de doces e  todo tipo de pequenos objetos, apenas para tentar ajudar minimamente seres humanos desprestigiados, às vezes perdidos. Por que não aguardei alguns segundos com o vidro aberto como fazia antes? E se ela ajeitasse a máscara, eu ficaria mais tranquila para ouvi-la oferecer seu produto?

Entretanto, o medo da estreita aproximação trouxe um pânico repentino à alma. Senti-me paralisada diante de algo tão comum. Situação como essa, há poucos meses, só apresentava o risco de assalto. Talvez pudesse perder o celular e algum trocado, porque carro velho  bandido não quer.

Permaneço observando a senhora indo de vidro em vidro tentar conseguir algumas moedas com a venda de suas mariolas. Isso, após pôr a máscara corretamente. Não vejo nenhum doce ser vendido até a abertura do sinal. A anciã se protege entre as colunas de concreto do viaduto e uma barraquinha de outro vendedor ambulante.

Esse corriqueiro episódio nos mostra que a tragédia humana provocada pela Covid-19 vai muito além do gigantesco número de vítimas. Será que conseguiremos ser os mesmos de antes? Na verdade, desejo que sejamos melhores!

E volto para casa torcendo que outros motoristas tenham compaixão e sejam mais corajosos que eu, para que não falte alimento no  jantar da tal senhora… Tudo isso vivi durante os 80 segundos em que o semáforo ficou no vermelho. O mesmo tom tomou conta do meu rosto, normalmente pálido.

Por Cleia Nascimento

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Cleia Nascimento

Transformo minhas singelas impressões em versos. Sou graduada em Letras (Português/Espanhol) pela UFF. Pós-Graduada em Leitura e Produção Textual, também pela Universidade Federal Fluminense. Atuo como professora de Língua Portuguesa e Literatura na rede estadual de educação do Rio de Janeiro. Também leciono na rede municipal de ensino de São Gonçalo. Sou autora do livro "Impressões em versos" e "Mamãe, brinca comigo?" (infantil). Tenho poemas publicados em algumas antologias poéticas nacionais. Contatos: e-mail [email protected] ou pelo Instagram @cleia_escritora.

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