8ª Edição – Conto: “Manchas e Carnaval” – Carina Lessa
Manchas e carnaval
Carina Lessa
É importante fixarmos uma data. Naquele mês de fevereiro poderíamos registrar o acontecimento. Uma modificação no estado natural das coisas era o inesperado. O sofrimento chegaria sem grande surpresa. Aguardava a hora marcada da morte. Quando se deita no sofá de casa, o teto lança gotículas de luz diante do olhar paralisado. Algumas vezes encontramos manchas antigas ou teias de aranha. As memórias alojam-se repentinamente e nos acomodamos em formas inalteráveis. Fantasias formatadas. Nunca morei em casa ou apartamento antes habitados. Preferia não ter de adivinhar a história por detrás das manchas. Não queria me distrair com um quadro antigo, pendurado de mau jeito ou caído no chão.
Nos últimos meses, pareceu-me nova a história das perdas. O apartamento há pouco habitado atraiu-me de relance quando da visita. Senti cheiro de rosas e não quis saber se estavam vivas ou mortas. Se estariam em vasos resistindo em água cristalina. Banhei-me de luz, a sala encantadora… Uma certa poeira pairava por lá. “Só a poeira conserva os teus divinos vestígios”, deixei o poeta dizer. Absorvi o ar impuro. Sem tristezas, deixei que falassem os campos, que guardassem as memórias. As flores estavam presentes e não me importei, pela primeira vez, com o lugar. Um frio na barriga passou despercebido, não dei atenção ao sopro melancólico. Teria sido insensível?
Quando se deita no sofá de casa é diferente. Depois de meses no mesmo lugar, você conhece a disposição das sombras, apreende o sentido dos objetos, percebe a escuridão que deveria evitar. No carnaval também há uma morte esperada. Para não deixar vestígios, reservei um quarto de hotel. Voltava de curta viagem e me instalava no Rio de Janeiro. Por lá, aparentemente, o inverno nunca é rigoroso, não faz diferença quando estamos no verão. No fim da tarde, com roupão de seda, sentei-me diante do laptop. Olhei o mar pela parede de vidro. Eu poderia levantar-me, ignorar a morte necessária. Tudo parecia extinto. Imaginei o mundo preso numa grande gaiola. O corpo do pássaro era a gaiola. De repente, uma beleza cósmica multicolorida agarrava-se às nuvens despencando em mar aberto. O mundo, num só tempo, deslizou bem definido.
Um raio furtivo extraiu do vidro algumas reflexões. Esqueci o túmulo. As luzes fixaram certa morada. Luiz descobria-se examinado. Ele andava sempre tão calmo, em silêncio, que acreditava me provocar medo. Deixava-me falar. Ouvia meus discursos sem perceber que o tom professoral sobre mim mesma escondia a dor natural da mesma vida. O eterno retorno, me entrega. Não há nada de novo. O fio de Ariadne era a minha própria vertigem. Aguardava. O silêncio parecia o eterno curso de Luiz. Espero ansiosamente a chegada. Se nunca chega, entendo que se entregou ao infinito.
Nunca houve a iminência da felicidade. Não senti o perigo.
Luiz era um corpo invisível. Não pude vê-lo em sua grandeza sentado junto ao copo de uísque. Nunca achou conveniente me oferecer o corpo queimando ao avançar em sua direção. Eu poderia suspender em timidez a franqueza dos gestos da alma.
Imaginei tantas vezes que ele precisava saber e experimentar. Eu o encontraria sem palavras, minhas mãos deslizariam pelo sexo já enrijecido. De olhos fechados, ainda tenho água na boca enquanto imagino os lábios visitando o corpo que não será meu. Há assassinatos que realmente não são previstos pela constituição. Sentei-me vestida apenas com roupão de seda decidida a matar. Uma morte lenta, porque avancei muito rapidamente. Entendi que Luiz era meu, mas a vida não pode ser sobrenatural sem a iminência do perigo. Ele nunca quis ser um corpo, uma contração de felicidade, uma descarga de energia pela espinha dorsal. Só ficou a franqueza dolorosa do tempo, da dor sem esmo.
Eu realmente não sei se aguento a sensualidade que nos consome em dom divino. Espero. Entrego-lhe a morte anunciada esperando que me salve, que me ofereça um átimo de esperança para que eu possa morrer em outros termos.