AraçáContos - Araça

Suplemento Araçá – Vol.01 – nº01 – Dez./2021 – Contos – “FELIZ ANIVERSÁRIO” – Carina Lessa

ISSN: 2764.3751

FELIZ ANIVERSÁRIO
Carina Lessa

– O que finalmente permanece?

O temporal já passou e ele escondido debaixo da capa vazia.

As melodias despertam a confiança de um ano inteiro. As tempestades passaram e julgamos calar nossos monstros. O ano inteiro a vela permaneceu acesa para os amantes. A vela ficou cintilante, esperou o momento da partida. Você acende uma vela, monta o cavalo e espera os movimentos incidentais. Não olha o céu, nem o horizonte. O cavalo trota. Julga receber instruções e os sortilégios do corpo.

Lá fora, o enredo apresenta admiravelmente as cenas mais afobadas e previsíveis. O mundo é uma promessa temporária. Os homens não conseguem omitir por longo tempo suas raízes. Divertem-se em discursos eloquentes, enquanto quebram taças vazias ou garrafas de gim.

Não se sabe se são os trovões ou a música suave, mas os delírios ganham espaço. Operam pequenas fissuras no dia a dia. Alguém diz:

– É a peste.

A vela acesa enquanto decide-se pelo fim imanente.

É a peste e o homem não sabe o que fazer. Sente o cataplasma pelo corpo, puxa o ar quase venenoso e o devolve em gotículas invisíveis.

Lá fora, o cântico é sempre o mesmo. Ouve-se os deuses. Poderia contar várias histórias que chegariam a doer. Suplicaria por longos anos que me deixassem os olhos fundos de preocupação. Por fim, adormeceríamos todos num sono reflexivo.

Os amantes esperam o dia derradeiro em que se apagam as velas. A valsa conduz os passos afetuosos. O bolo na mesa.

Imagino a confecção do bolo. Ao fundo, ouço Blue Moon. Billie Holiday fecha os olhos. Prende as madeixas. Morde levemente os lábios depois de passar o batom. A carne está queimando, talvez sejam os corvos de sempre.

– Feliz Aniversário, meu bem. Eu estou vendo você. Tomarei um café enquanto a batedeira mistura os ingredientes. São dias primaveris, então imagine o cair da noite com uma baforada de alegria, o bolo estará pronto. Não é adorável o olhar triste que te lanço? Imagine a noite que te faz feliz. Com frio ou molhada, eu te encontrarei ao amanhecer.

Ensaio expressões convincentes e tento coser na personagem. Observo as mudanças no tom da pele, a tensão e o relaxamento dos músculos. As pupilas parecem um tanto dilatadas. Envergonho-me. Antes era tão viril. Oferecia à personagem o bailar de uma festa… agora, caminho em agonia. Os poros estão abertos. A felicidade é um pavilhão de mau agouro. Os corvos de sempre povoam o teto enquanto seus músculos despertam esperando a luxúria.

– Francamente? Percebo que sente pouco prazer, meu bem. Construa expectativas românticas, não seja mimado. Invente algumas posições e perceba a areia movediça. O tecido sangra e você correrá o risco de ser infectado. É a peste entre os homens.

Não me venha com palavras de gratidão. Não me julgue só pelo sangue. Sim. Ensaio expressões, são verdadeiras. As brasas estão penduradas em varal sujo. No momento, só a fuligem te salva das melhores lembranças.

A ilha está desabitada. O cavalo trotava quando um tapete insólito surgiu no meio da mata. Caímos.

O bolo na mesa prevendo o mousse branco bem adocicado. Lambuzará a boca.

Rumores sobre a festa particular se espalham em melodias depois da tempestade. O que permanece? Uma invejável coleção de esculturas raras?

Ensaio expressões para a personagem. Um mosquito voa, pica. Voava em rotas comerciais, parecem pontilhar um recado. Alerta-me sobre os tabloides, fabricam relatos sobre laços familiares pouco convincentes. Minhas palavras genuínas despem a personagem, uma vez que estamos infelizes.

– Ela me olha desencantada.  Me repreende. Me diz ter sentimentos por mim.

A atriz independente pega do casaco e coloca chapéu retro. Desfila feito uma cortesã popular. Reivindica o pagamento mensal. Quando visualizei o abuso ridículo, eu a proibi de ficar magoada. Todos os dias eu mesma tentava me proibir. Comporte-se com o cliente. Não sinta medo nem emoção.

– Feliz Aniversário, meu bem. Tome um chá. Posso parecer enfadonha, talvez sejam os governos e as empresas. Você tem uma lista muito grande de conquistas e beldades, reconheço. Mas o país anda em crise. Querem privatizar a nossa alma, tornam o nosso corpo indigente. O vírus nos convoca à máscara e nos proíbe dos sorrisos mais sinceros.

Em tom mais baixo, apresento-lhe uma polidez tediosa.

– Perceba o cheiro das especiarias que havia recomendado, não se encontram facilmente fora dos livros. Agrade o paladar com distância e polidez. Não se lambuze, a roupa fica suja. Seja educado. Escolha uma bebida refinada. Gastei boa parte das minhas economias lisonjeiras para te oferecer este jantar. Agora, observo o bolo. Não sou capaz de encantá-lo mais uma vez. Feliz Aniversário, meu bem. Use gravatas bem ajustadas, seja o pior homem, beba whisky até cair. A doce Billie beijou meus lábios. Sinta a saliva escorrendo. O amor é apenas uma torneira, quando você pensa que está aberta, my lord, ela se fechou e sumiu.

______________________________________________

Carina Lessa é Doutora em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira) pela UFRJ. Professora de graduação e pós-graduação da Unesa nos cursos de Direito, Relações Internacionais, Pedagogia e Letras.

______________________________________________

Contatos:
E-mail: [email protected]
Instagram: @revistaentrepoetas

Envie seu texto para publicação gratuita.

Mostrar mais

Redação

A Revista "Entre Poetas & Poesias" surgiu para divulgar a arte e a cultura em São Gonçalo e Região. Um projeto criado e coordenado pelo professor Renato Cardoso, que junto a 26 colunistas, irá proporcionar um espaço agradável de pura arte. Contatos WhatsApp: (21) 994736353 Facebook: facebook.com/revistaentrepoetasepoesias Email: [email protected]

Artigos relacionados

Botão Voltar ao topo
Fechar
Fechar
%d blogueiros gostam disto: