Erick BernardesHISTÓRIAS DE ARARIBOIA

Traquinagens no Horto do Barreto

Série: Histórias de Arariboia

Fotos de Erick Bernardes. No detalhe: estátua “O Trabalhador”, Busto do Monteiro Lobato e frontispício da biblioteca homônima

Falemos de saudade! É um tema muito íntimo, sobretudo na época atual. Mas o que é saudade? Se o vocabulário não falha, é o desejo de ver de novo.

Quiçá esta designação não lhe satisfaça, entretanto, isto pouco me incomoda. Estou expondo uma definição sentimental. É natural que decidas questionar as minhas explicações prontas, insuficientes, apenas palavras. Continuemos.

A geografia niteroiense é a alma da cidade. A cartografia citadina se compõe de monumentos, de ruas, de casas, de famílias e de indivíduos (alguns sobremaneira famosos), assim é e foi o município. Mas, admito, sinto falta daquela minha antiga Niterói.

Já se vê, pois, que a saudade deve ser também o sentimento do bom viver das pessoas. A memória emocional, digamos assim, se revela sinônimo de afetação. E, por falar em afeto, sabe qual bairro me enche de lembranças gostosas? Pois bem, saudades do Barreto, ou melhor, mais especificamente sinto falta das traquinagens praticadas no Horto do Barreto, cujo real nome consta como Palmir Silva. Recordo de que o Horto sempre foi um bom refúgio para as crianças da comunidade do Morro dos Marítimos. Época boa. Não tenho receio algum de afirmar que me criei com gosto por lá.

Visando facilitar o caminho, a gente quebrava o muro de acesso nos limites da comunidade. O muro quebrado era referência para marcar o encontro com a molecada. “Te espero às 2 horas lá no muro quebrado”, combinávamos assim. Através de um caminho sinuoso e cheio de mato, a gente descia correndo pela trilha que levava ao horto. Ou então nos encontrávamos perto da tal Estátua do Trabalhador, mas que apelidamos de índio de pedra. Uns amigos levavam carrinhos de roda de bilha apoiados na cabeça, outros ostentavam suas bikes e bolas de futebol do tipo dente-de-leite. Contudo, necessário reconhecer, a melhor das brincadeiras era subir nas árvores do parque. Não por fetiche, mas para a degustação. Frutos da mata. Ingá, manga, jamelão, jambo e até Jenipapo.

Para nossas guerras praticadas em gangues, tínhamos o pó-de-mico. Algumas vezes batalhas de mamonas ou jurubebas. Uma agonia só ver aquela criançada com urticária provocada por outros amiguinhos mais sagazes. Mas isso era para a turma de guerrilheiros mirins. Eu nunca me meti a besta. Ao final das zoações, os meninos estavam todos cheios de lanhos vermelhos e se coçavam por horas sem conta. Eles rolavam no chão para aliviar a coceira. De longe eu achava engraçado, mas só de longe, para não correr o risco de ser alvejado pelo ataque de pó-de-mico também.

A pista de skate era uma espécie de caldeirão da fama. Toda criança queria se exibir ali. Em vez de skate usávamos bicicletas e carrinhos de rolimã. Em formato de “P”, construíram a pista perigosa e que se apinhava de gente gritando por uma ou outra volta espetacular.

Sim, certa vez eu também cai por lá. Um tombo e tanto. Arremessado da parte mais alta da pista. Fui motivo de susto e euforia para os amigos, mas também de risos e gargalhadas depois. Agora, um segredo: o horto era território onde rolava o primeiro beijo de muita gente. Bom ressaltar ainda o cansaço das traquinagens comuns. A gente brincava de pique-esconde. Mas um pique-esconde diferente: o vencedor ganhava um beijo estalinho da capitã. Que saudade!

As atividades organizadas pelo horto eram as melhores. Foi no espaço também que vi o teatro pela primeira vez. Ficava sentado, admirando a aula de artes cênicas através da grade. Não havia mais vaga. Uma pena, pedi ao meu pai para entrar e consegui. Na arena, os grupos ensaiavam suas peças; eu era plateia certa. Havia ainda o grupo de escoteiros. Tudo lindo, marchavam uniformizados e cantavam músicas em coro. Um menino fascinado é como posso resumir a mim mesmo.

Pois é, caro amigo Erick, saudades daquele tempo. Chamávamos o horto de Monteiro Lobato. Tudo por causa do busto peculiar plantado no espaço do parque. Há hoje até Biblioteca com nome do escritor famoso. Mas a vida adulta oferece pitadas de revelações. Imagine. Uma estranheza atrás da outra. Depois de crescido me foi revelado o real nome do lugar. Pois é, Palmir Silva é o registro fiel do tal horto. Um choque ao cidadão mirim. Chatíssima constatação.

Dia desses, caminhando com a minha filha pelo Jardim Japonês, me dou conta de que ainda estou lá. Verdade. A alma adulta se encontra de alguma forma àquela lembrança. Chamamos a isso de memória, caro leitor. Os antigos apelidaram esse recordar de vida. Muito justo, sim, memória é vida. Confesso que os olhos saudosos teimaram marejar um pouco, claro, impossível não soltar um ou dois suspiros chorosos. Imagens de infância. No entanto, olhando assim ao longe e com a cabeça em retrospecto, consigo até ouvir a criança gritando. Vê-la degustar das frutas ainda por maturar; o farfalhar das goiabeiras. Essa criança sou eu.

* Essa história só nos foi possível devido ao relato do professor André Correia, um memorialista e amigo ativista. Nossa homenagem a ele.

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Erick Bernardes

A mesmice e a previsibilidade cotidiana estão na contramão do prazer de viver. Acredito que a rotina do homem moderno é a causadora do tédio. Por isso, sugiro que façamos algo novo sempre que pudermos: é bom surpreendermos alguém ou até presentearmos a nós mesmos com a atitude inesperada da leitura descompromissada. Importa (ao meu ver) sentirmos o gosto de “ser”; pormos uma pitadinha de sabor literário no tempero da nossa existência. Que tal uma poesia, um conto ou um romance? É esse o meu propósito, o saber por meio do sabor de que a literatura é capaz proporcionar. Como professor, escritor e palestrante tenho me dedicado a divulgar a cultura e a arte. Sou Mestre em Letras pela Faculdade de Formação de Professores da UERJ e componho para a Revista Entre Poetas e Poesias — e cujo objetivo é disseminar a arte pelo Brasil. Escrevo para o Jornal Daki: a notícia que interessa, sob a proposta de resgatar a memória da cidade sob a forma de crônicas literárias recheadas de aspectos poéticos. Além disso, tenho me dedicado com afinco a palestrar nas escolas e eventos culturais sobre o meu livro Panapaná: contos sombrios e o livro Cambada: crônicas de papa-goiabas, cujos textos buscam recontar o passado recente de forma quase fabular, valendo-me da ótica do entretenimento ficcional. Mergulhe no universo da leitura, leia as muitas histórias curiosas e divertidas escritas especialmente para você. Para quem queira entrar em contato comigo: [email protected] e site: https://escritorerick.weebly.com/ ou meu celular\whatsapp: 98571-9114.

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