Carina Lessa

O voo dos pássaros

 

Esquecido de tudo, e sobretudo, de si mesmo, ele passa acordado noite e dia, e ainda ri de todas as coisas, sejam graves ou insignificantes, sem considerar a continuidade de toda a vida. Alguém se casa, outro faz comércio, outro fala à cidade, outros comandam, partem em embaixada, são eleitos, destituídos, adoecem, são feridos, morrem, e ele ri de tudo, dos mudos, dos melancólicos e dos que parecem felizes. (A cidade fala a Hipócrates sobre Demócrito)

 

Há visitas sempre atuais.

Não precisamos oferecer um nome à cidade planejada.

A linhagem dos personagens se apresenta, mas acreditamos que não se renovem ao longo dos séculos. Caro companheiro de jornada, receba o hóspede sem pestanejar. Suas palavras chegam espantosas e, de início, acreditamos ser blasfêmias jogadas nessa infinidade de janelas instantâneas. Aparecem em fotos das antigas polaroides, coloridas e com margens a serem preenchidas por anotações muitas vezes vazias, tais quais nos dicionários escolares. A história pode ser verdadeira, e cada um tem a sua.

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Se resolver passear pelo quintal antes da chegada do hóspede, não se esqueça de acarinhar as flores e fotografar o seu melhor ângulo com aqueles cabos de selfie. Dispare palavras como répteis gigantes.

Rafael julgou ver uma moça passar do outro lado da rua. Imaginou tocá-la. Em vez de sentir a vibração dos ossos, afastou-se. Talvez seja o tal vazio dos dicionários, o ar refrescou desagradavelmente e ele logo se viu dentro de casa. O vento anda curto. Nada das tempestades necessárias em tempos de calor. De imediato, prescreve a si mesmo um dose de claustrofobia, enquanto já abre o armário com roupas velhas e cheias de traças. Nem falamos do cheiro de creolina, hábito antigo da família que Rafael não consegue abandonar. Vai o cheiro de creolina e umas palavras raspadas na porta do guarda-roupas desde a adolescência. Ficou parado ali sem saber o que procurava e se assustou quando percebeu olhar pela janela. Uns pássaros indefiníveis voavam displicentes, não sabemos de quê.

Mude a planta, companheiro.

Um flautista, seu vizinho, toca uma cantiga nova.

Prazeres superficiais.

Moram na cidade algumas lacunas entediantes. O flautista até ignora, mas Rafael se pergunta se a música de fato toca. O som escorreu distante até a casa e bateu atravessado no guarda-roupas com aroma de creolina. Consideramos um ornamento artificial da cidade. Sentou, pegou do papel e acolheu a escrivaninha. Prazeroso mesmo seria a entrada de um homem às margens do quarto e do papel invulgar…

Não, não. Esqueça a planta.

O fato é que nessas paragens o barril não para de rolar, Rafael. Nós fazemos votos de que seja uma falsa impressão. Os vasos sanguíneos estão dilatados? Foi o que nos disseram.

Riso desmedido. Riso desmedido…

– A chave?

Estava o tempo toda na porta, companheiro, você não viu?

 

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Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

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