Erick BernardesHISTÓRIAS DE ARARIBOIA

O Morro do Céu e o apagamento de um paraíso

Série: Histórias de Arariboia

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Encontram-se às vezes na história das cidades certos reveses do destino tão peculiares que parecem desvelar uma lei fatal e misteriosa, um laço invisível que através dos tempos conjuga acontecimentos oportunos.

O tempo, dizia Antonio Candido, não é dinheiro como a maioria pensa. Tempo é antes de tudo a vida, dádiva consciente de se fazer presente no mundo. Por isso, dou graças a Deus por me permitir conhecer o cachaceiro Tião Fumaça. Sim, exatamente, no lugar e na hora certa, estávamos juntos e cara a cara para conversa informal. Pois é, falo aqui de um choque cultural dos mais característicos, quando conheci um dos descendentes de antiga família onde hoje é o lixão Morro do Céu, em Niterói.

Toda a memória da vida pregressa de Sebastião Alencar, o Tião Fumaça, se desenha no espírito do moço com tão vivas cores, que parecem saídas de contos felizes europeus – e olha que mais de trinta anos já lhes pairaram sobre o corpo castigado. O caso se passou assim:

— Que horas tem, aí, camarada?

Bem, necessário descrever o meu interlocutor. Calças amarrotadas e sujas. Barbas sem um pingo de higiene. Boné molhado, cotovelos escamados, bafo de cachaça e olhar emaconhado. Sem camisa.

— Onze e quinze, respondi

Confesso que o visual do sujeito me incomodou. Preconceito? Falta de humanidade da minha parte. Sim, pensando agora com o necessário distanciamento do escritor. Reconheço, sou um preconceituoso em luta por não ser. Aceito o rótulo, mas tento desconstruir. O fato é que, embora eu tenha tentado me afastar, o referido homem de andar balançante pareceu carente de conversa. Nem só de lama e sujeira vive o cidadão em estado etílico cuja noite anterior rolou horrores no chão. Mas conversou, ou melhor, me ofereceu a história do Morro do Céu assim:

— Essa pandemia diminuiu a minha fonte de renda. Tomei um porre pra ver se esqueço essa merda de vida. Trabalho de coletor no lixão. Moro e vivo no Morro do Céu. Só a metade dos caminhões está despejando material de resíduo pra nós. Não tenho noção do motivo de tamanha redução. Vendi uns bagulhos pra não ficar sem comida na mesa. Está difícil até pra catador. O pessoal do movimento sentiu o baque também. Pandemia desgramada!

Bem, caro leitor, necessário afirmar que um bom bate-papo me conquista. Embora eu tenha suprimido aqui os palavrões, gostei da narrativa. Esqueci o cheiro de urina e suor encroado no homem. O véu invisível da simpatia encobriu suas roupas em frangalhos. Exato, a afinidade brotou do nada só porque aquele cidadão cambaleante falou da sua descendência. Continuou:

— Sabia que o Morro do Céu já foi um dos lugares mais bonitos de Niterói? Por isso o nome é assim. O céu não é o paraíso? Então! Minha bisavó tinha sítio. Vendia taioba, ovo de galinha caipira e pamonha na feira. Tudo produzido no morro mesmo. Região de vales e rios limpos. Mas depois tudo mudou, chegou a galera da droga. E depois o lixão. Deu um bafafá danado, pois os moradores não queriam um monte de porcarias chamando moscas e urubus. Mas fizeram mesmo assim. Agora quem não quer que o lixão seja transferido somos nós. Claro, vivemos da coleta e reciclagem. O problema maior se chama chorume, porque contamina os poucos lugares onde insistem em plantar. E o pior é a água de poço, até mau cheiro tem. É morro, né? Ou acha que chega água potável pra todos. Favelão mesmo. Moro lá, tá ruim agora. Péssimo.

— Qual o seu nome?

— Sebastião Alencar, tenho sobrenome de escritor. Me chamam de Tião Fumaça lá em cima.

Depois da narrativa e a decisão súbita do Tião ir embora, me lancei na introspecção. Quanta história: tanto do homem quanto do Morro do Céu. O gênero humano é bem capaz de percorrer os caminhos já trilhados por outrem através da comunicação. Quem não atravessa ansiedades, dores e porres na vida não se enxerga no outro. Revendo minhas próprias sarjetas mentais, reconheci problemas comuns aos seres deste planeta. A melancolia, a preocupação com a alimentação dos filhos e a necessidade humana de conversar.

Naquele mesmo dia, descobri um novo mundo, pesquisei muitíssimo na internet. É, pois, um universo paralelo aquela comunidade. Um mundo de gente guerreira e sofrida. O mundo do Morro do Céu.

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Erick Bernardes

A mesmice e a previsibilidade cotidiana estão na contramão do prazer de viver. Acredito que a rotina do homem moderno é a causadora do tédio. Por isso, sugiro que façamos algo novo sempre que pudermos: é bom surpreendermos alguém ou até presentearmos a nós mesmos com a atitude inesperada da leitura descompromissada. Importa (ao meu ver) sentirmos o gosto de “ser”; pormos uma pitadinha de sabor literário no tempero da nossa existência. Que tal uma poesia, um conto ou um romance? É esse o meu propósito, o saber por meio do sabor de que a literatura é capaz proporcionar. Como professor, escritor e palestrante tenho me dedicado a divulgar a cultura e a arte. Sou Mestre em Letras pela Faculdade de Formação de Professores da UERJ e componho para a Revista Entre Poetas e Poesias — e cujo objetivo é disseminar a arte pelo Brasil. Escrevo para o Jornal Daki: a notícia que interessa, sob a proposta de resgatar a memória da cidade sob a forma de crônicas literárias recheadas de aspectos poéticos. Além disso, tenho me dedicado com afinco a palestrar nas escolas e eventos culturais sobre o meu livro Panapaná: contos sombrios e o livro Cambada: crônicas de papa-goiabas, cujos textos buscam recontar o passado recente de forma quase fabular, valendo-me da ótica do entretenimento ficcional. Mergulhe no universo da leitura, leia as muitas histórias curiosas e divertidas escritas especialmente para você. Para quem queira entrar em contato comigo: [email protected] e site: https://escritorerick.weebly.com/ ou meu celular\whatsapp: 98571-9114.

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