Carina Lessa

Espectros políticos: conversa sobre pessoas

 

“As pessoas consideravam o que eu estava fazendo

algum tipo de prospecção diabólica.” – Roberto da Matta (1997)

 

Não é preciso ler Roberto da Matta para entender que o brasileiro pesquisar o Brasil é um teste de resistência. No entanto, a afirmação que o antropólogo faz sobre quando resolve se adentrar pelas matas dos apinayé é bem elucidativa, porque ele não tinha dinheiro para pesquisa enquanto os norte-americanos desfilavam com gravadores caros, remédios e comidas próprias. A sofisticação maior ficava por conta das viagens destes pela FAB (Força Aérea Brasileira), enquanto Lévi-Strauss o chamava de louco, na medida em que não podia dar conta nem da malária ou de um possível afogamento. Isso é coisa que se aprende no Brasil sobre o Brasil, podemos parafraseá-lo.

“Há que se receber em casa”, ele afirma, de modo que com visão ampla, por experiência familiar e profissional, a hospitalidade ganhou espaço de significação quase intransigente com a ideia de diferença regional, porque a pedra de toque estava na raiz da pele. Passeou desde o começo meio instintivo, injetando no “Gato Preto” cinematográfico uma tonalidade de Edgar Alan Poe que pareceria um prato bem servido à moda do orientador francês. A ironia fica por conta da lembrança vaga que encanta Lévi-Strauss: a análise que Poe faz da dama do xadrez. Lembro aqui dois fragmentos incisivos de “Os crimes da rua Morgue”:

“Aproveitarei, pois, esta ocasião para afirmar que as faculdades mais importantes da inteligência reflexiva agem de maneira mais decisiva e útil no simples jogo de damas do que em toda essa frivolidade complicada do xadrez. Neste último, onde as peças têm movimentos diferentes e estranhos, com valores e variáveis, o que é apenas complexo é considerado (erro nada incomum) profundo.”

“Suponhamos um jogo de damas em que as peças sejam reduzidas a quatro reis e onde, naturalmente, não é de se esperar qualquer descuido. É evidente que, aqui, a vitória só poderá ser decidida (achando-se os jogadores em igualdade de condições) pelo movimento rebuscado resultante de um determinado esforço de inteligência. Privado de recursos ordinários, o analista penetra no espírito de seu oponente, identifica-se com ele e, não raro, vê, num relance o único meio (às vezes absurdamente simples) mediante o qual poderá induzi-lo a engano ou levá-lo a um erro de cálculo.

 

Da Matta queria mesmo pensar, para além do estruturalismo, a função do sobrenatural nessa gambiarra de ideias. Para além destas que o rodeavam, o estudo cultural se formou no seu interior como vivência socializante impositiva, fora o caso do carnaval, por exemplo. Ao viver a experiência do “exílio”, pois morava nos Estados Unidos na década de 1960, passa a recuperar a sonância do carnaval no pequeno aparelho de som que lhe trará os ventos também da Tropicália. Fora criticado à época pela concepção calorosa que traz de “rito de passagem”, coisa intragável para sociedade de indivíduos. Mas escorria-lhe fundamental lembrança da mãe amazonense saída do nicho “original”, de quando os carnavais representavam dele e dos irmãos os impostos batom e ruge do pierrô triste, a inversão do mundo que lhe inquietaria como força nascente no futuro.

Em “Sabe com quem está falando? Um ensaio sobre a distinção entre indivíduo e pessoa no Brasil, Da Matta já inicia apontando a extraordinária revelação da nossa ordem social, a festa: seja pela pátria, pelo samba ou pelas procissões religiosas. Voltemos ao xadrez das variáveis, que reivindica fôlego de performances e embates entre peças, forças e variáveis diferentes, não estaria aí o jogo honesto e ético da sociedade? Em contraposição, Poe problematiza a ausência de caráter, a imoralidade do jogo de damas, que, num único relance, é capaz de confundir e levar a um erro de cálculo. Acrescentaria um grão de areia nesse embate entre indivíduos e pessoas: o olhar “altero-miasmático” (invenciono a palavra). Faço-o pensando em movimento mais avançado em que antropologia, sociologia, ciências humanas e naturais entram em decomposição e/ou espalham o vírus da ignorância e da desconfiança. Atropelo da amizade com o mundo.

No ensaio supracitado, Da Matta retoma a expressão “rito” para falar da separação autoritária imposta pela frase “sabe com quem está falando?”, tão presente em vários cenários sociais brasileiros, o “cada qual sabe do seu lugar”, que nos dissocia da amorosidade, reatualiza-se pelo carnaval ou, ainda, pelo desbunde contracultural já mencionado. A expressão nega o recurso da sobrevivência social elegante. O “rito da separação” credita o corpo a um lugar outro, se o interlocutor acredita na ameaça do cargo que ocupa. Uma pessoa jamais usará a expressão se não sofrer complexo de inferioridade e não aceitar se sentir subjulgada em relação ao seu status social. Com isso, quero falar sobre os excessos da contemporânea “guerra cultural”. Todos parecem conhecer e obedecer a regras de bom convívio, etiquetam as marcas de respeito, os costumes e as praxes das relações, sem perceber as afrontas tribais e amargas do cotidiano.

O erro social, inflacionado pela jogo de damas, cai nas malhas sociais do indivíduo. Por algum motivo estranho, todos estão pairando feito garça no lodo de um rio, por algum motivo estranho perdemos a noção de lugar. Aplicado aos grupos menores, sabemos, não se consegue chegar a qualquer consenso sobre o uso da expressão. E se tu fosses o motorista do ministro? Aproprio-me ironicamente do exemplo usado por Da Matta no ensaio. Uma pessoa não quer o carro-chefe ou o cavalo fechado no xadrez.

(Imagem disponível em: https://pixabay.com/pt/photos/malhado-gato-xadrez-jogos-5946499/)

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Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

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