Preconceito Linguístico
Preconceito Linguístico
Raramente acordo atrasado, mas como fiquei até tarde da noite corrigindo provas sabia que aquela segunda-feira seria corrida. Arrumei-me como um foguete e entre uns goles de café engoli um pão com manteiga.
Tranquei a porta do apartamento e enquanto esperava o elevador no corredor o vizinho do 504 que também aguardava, conversava em italiano com alguém do outro lado da linha e despediu-se rapidamente quando o elevador parou no andar com a desculpa que perderia o sinal ao entrar. Ele me olhou, sorriu e sem que eu falasse nada, me disse com um sotaque paulista carregado “Ora meu! Meu primo me convidou pra fazer um curso de verão e ficar na casa dele na Itália. Muito da hora, isso!” Assim que chegamos à portaria nos despedimos.
Ao pegar minha correspondência, o porteiro que era Gaúcho foi logo contando as últimas novidades do condomínio. “Bah, tu não sabes o que aconteceu ontem aqui, tchê! O Guri dos Pereiras foi roubar o carro dos pais pra passear e bateu em quatro carros na garagem” Fiz cara de espanto, mas logo lembrei que andava de ônibus e estava atrasado.
Sai correndo para o ponto e quando fiz sinal para meu ônibus que vinha uma senhora tocou meu ombro e perguntou puxando no som do esse “licencinha moço, esse ônibus passa perto do Museu de Artes” respondi que sim e a senhora muito sorridente agradeceu emendando “minha filha vai encontrar comigo pra assistirmos uma exposição de uns trem lá”.
Entramos no coletivo e sentamos em lugares distintos. Solitário, passei a refletir o quão plural é o nosso idioma. Em pouco tempo ouvi vários dialetos. De repente uma voz alta me trouxe a realidade. Um homem vendia guloseimas para os passageiros e no seu discurso o ouvi pronunciar “pobrema, dois real, chicrete, roubano, matano, doutô, bençoi” entre outras. Mesmo com toda essa forma diferente de falar ele conseguiu o principal, se comunicar e vender seu produto.
No trajeto ainda li em alguns letreiros de comércio nomes como: Comida caseira de mainha e Forró Ô Xente e na hora se saltar no meu ponto me despedi do motorista com um “valeu irmão” da forma mais carioca possível.
Cheguei dentro da sala de aula mais decidido que nunca, a aula seria sobre preconceito linguístico. Como professor tenho a obrigação de ensinar a Norma Culta, mas também os seus dialetos e variações mostrando que não existe língua pura. Por isso passei pra eles que devemos entender que a língua é viva e não há mais espaço para desprezarmos a linguagem dos outros.
Por Renatto D’Euthymio
Instagram: @renattodeuthymio
E-mail: renattodeuthymio@gmail.com
Crônica premiada em 8° lugar no Concurso Literário da Academia Fluminense de Letras 2018 com o Tema: O professor e seus dilemas atuais.