Valdeci Santana

A bailarina de Auschwitz

Flutua elegante a bailarina pelo tablado. Seus braços esguios esvoaçando em movimentos graciosos. Uma garça tecida em tez levemente acobreada. Generais das mais distintas patentes se emudecem quando ela entra em cena. A fumaça em espiral que sobe de seus charutos empresta ao recinto, um aspecto mórbido, insuficiente para ofuscar o brilho da bailarina. A orquestra, composta por músicos ossudos, porém, com as mazelas de seus corpos camufladas pelos trajes quase limpos, tenta a todo custo, fazer jus ao desempenho da jovem e pálida bailarina.
Linda bailarina! Quando gira num esplendoroso fouetté nossos olhares se encontram. Rápido, mas, o suficiente para denunciar minha bisbilhotice, observando-a através da vidraça embaçada. Desconcertado fico, Assustado. Afinal, nunca sou visto pelas pessoas. Elas até sentem meu cheiro, se intrigam com meu habitual silêncio, mas, nunca veem meu rosto. E isso foi o que mais me atraiu naquela bela bailarina. A coragem de fitar os olhos da morte.
A neve intensa que goteja aqui fora salpica os telhados do campo de Auschwitz, encobrindo os últimos vestígios de sangue no pátio principal. O vento uiva tal qual um animal ferido. Creio que a expressão “inferno na terra” seja oriunda do campo de Auschwitz. Mas, duvido que o diabo tenha tanta criatividade para o mal, quanto os humanos. Tenho muito trabalho a fazer, mas, não consigo tirar meus olhos da bailarina judia, que exibe seu talento aos nazistas. A grossa maquiagem que lhe contorna os olhos, quase camufla as lágrimas que os marejam. Sua desenvoltura é angelical. Por um breve momento, sinto-me no paraíso.
As pessoas sussurram quando falam meu nome. Como se ao mencioná-lo, estariam invocando minha presença. Sou visita indesejável. E eu as compreendo, mas, trato de esclarecer que sou apenas a extensão da vida. De toda forma, mesmo que eu dissesse meu verdadeiro nome, as pessoas jamais conseguiriam pronunciá-lo, por isso, ficamos com morte, em letra minúscula mesmo. Tão comum e simplório quanto meu ofício!
Geralmente, sou muito atarefado, o que é natural, já que trabalho para tanta gente! Mas, nunca trabalhei tanto, quanto naqueles duros anos de guerra. Só no campo de Auschwitz o trabalho era cada vez mais intenso e diário. Por esta razão, evito olhar para os vivos, pois eles me distraem. As pessoas me intrigam. Têm tempo de sobra e é justamente na minha presença que lhes ocorrem a necessidade de mais tempo. Todos querem barganhar tempo, como se eu o tivesse. Se eu tivesse o tempo a meu dispor, eu não seria a morte, seria a vida.
Somente dois dos oficiais SS cometem a decência de aplaudi-la, como se agradecessem pelo espetáculo proporcionado, digno de Bolshoi. Era louvável a elegância com a qual aquela bailarina prisioneira executava aquela sua sentença, de se apresentar todas as noites aos comandantes nazistas, para lhes propor diversão, enquanto uma chuva de bombardeios e morte irrompia sobre as cidades.
Se me antecipo, corro o risco de me distrair com os vivos. Se me atraso, sou obrigado a acompanhar o desespero da alma que se afoga, no espaço que separa a vida de minha presença. Vocês não fazem ideia do desespero que envolve alguém, cujo prazo em vida se excedeu e tendo a morte se atrasado, fica num colapso torturante entre os apegos da vida e a incerteza do nada.
Quando a alma leve daquele prisioneiro se acomodou em meus braços, eu estava em profundo remorso, por tê-lo proporcionado tal sofrimento. Se as pessoas soubessem a verdade sobre meu oficio, jamais me elegeriam como inimigo.
De passagem pelos becos escuros, lacrados por arames farpados, dei uma ultima espiadela pela vidraça. E pude sorver os contornos suaves da jovem bailarina. Estava exausta, como um pião enfraquecido pelos constantes giros, que vai lentamente perdendo a força. Seus olhos verdes e cintilantes cravaram-se em minha face, como um claro pedido de socorro. Seus lábios perolados pareciam redigir aquele clamor. E o fato de não poder ajudá-la, trouxe-me imediato desespero. E covardemente, fugi.
Todos os dias eu ia a Auschwitz recolher as almas. O céu ali era sempre cinza, assim como os prisioneiros também eram cinza. Aliás, cinza é a cor da guerra.
Curioso, não resisti e tratei de espiar a jovem bailarina. Ela estava ajoelhada ao pé de uma dos tantos beliches de madeira, espalhados ao longo do dormitório fétido. Acariciava o rosto de uma jovem judia, com um pano úmido, tentando conter-lhe a febre. Eu sabia que era em vão. Logo sua jovem colega estaria em meus braços. Dediquei bom tempo a observar a elegância natural da jovem bailarina. Tive vontade de tocar aqueles cabelos, separados no centro do crânio, deslizar meu toque na macies de sua pele morna.
—Leve-me. –Sussurrou sua voz cristalizada, modulada pelo embargo da emoção.
Tive vontade de abraçá-la, aconchegar a quentura de seu corpo em meus braços, mas, sabendo as consequências de um abraço meu, me recolhi. Eu só abraço as pessoas uma vez apenas, mas, é tão rápido que nunca estabelecemos um elo, e a bela bailarina, foi a primeira pessoa a incitar em mim, o desejo de estabelecer elo.
Ao contrário do que os humanos pensam, conheço muito bem o amor. Aprendi tudo sobre esta matéria, com as almas que carrego. No momento da morte, quando as mentiras da vida são deixadas de lado, as pessoas revelam toda a essência do amor. Portanto, eu sabia que estava amando aquela bailarina. A ânsia de tê-la em meus braços tornava-me um egoísta, assim como são egoístas todos os apaixonados, que querem para si todo o amor que há no mundo.
Numa tarde fria e tensa, não menos cinzenta que as outras, um grupo de judeus aguardava sua execução no pátio principal. Trêmulos, na mira de rifles nazistas, mentalmente os pobres prisioneiros passavam suas vidas a limpo. Nenhum deles ousou pedir-me mais tempo, pois, talvez soubessem que não seria possível, ou, até entendessem que eu estava ali para libertá-los. Os outros presos que observavam à execução clamavam por piedade, em vão. Os comandantes iniciavam o ritual de execução. As forças aliadas estavam próximas, os nazistas evacuavam o campo de concentração, mas, antes disso, pretendiam assassinar o maior numero possível de judeus. Quando, para surpresa geral, minha inclusive, a linda garça intercessora surge no corredor que separa o pelotão de artilharia SS e os judeus que, encostados na parede, aguardam fuzilamento.
Gracioso anjo que levita na ponta dos pés, sobre o ladrilho escorregadio. O puído uniforme listrado do cárcere não lhe faz justiça. Mas, os suaves contornos de seu corpo frágil ondulando debaixo dele, enfeitiça qualquer olhar. Os longos fios de seus cabelos castanhos estão soltos, rebelados ao vento, chicoteando seu rosto bem desenhado. Seus olhos verdes são penetrantes e destemidos. Não há canção. O mundo se cala. Porém, assim como a bailarina, também sou capaz de ouvir a batida que lhe propõe uma trilha sonora eletrizante. Está nas batidas de cada coração que pulsa desesperado ao redor.
Novamente a distração.
Das mãos de um jovem soldado, que não tivera ainda a honra de se juntar aos oficiais, nos tradicionais espetáculos noturnos, escapa um aplauso, que contagia os colegas de farda. Guerra e aplausos são contagiantes. Cumplicidades de palco e de trincheiras são perpétuas. As armas são recolhidas. O comandante em frenesi, abalado pela emoção do momento ordena imediata retirada. No pátio, desaba sem forças, a graciosa garça. É imediatamente amparada por aqueles que lhe devem suas curtas vidas. É quando ela novamente procura meus olhos, e penetra neles toda sua doçura. Ela sabe que não tomo seu triunfo como uma afronta pessoal. Nós dois sabemos que ela não triunfou sobre a morte, até porque, sou invencível. Ela, com sua doçura e seus movimentos encantadores, provou que o amor incrustado em sua arte, é a arma mais forte contra a maldade humana. E completamente atordoado, encantado e perdidamente apaixonado pela bailarina, me curvei, como se curva um dedicado súdito para sua realeza.
Encontrei a bailarina algum tempo adiante, e ela prontamente me reconheceu. Não fez qualquer oposição ou objeção, apenas inquiriu uma ultima dança. Fiquei orgulhoso pela honra de poder lhe fazer par, enquanto ela rodopiava seus encantos em meus braços, numa dança afetuosa e única.

Fonte da imagem: https://www.pexels.com/pt-br/foto/predios-edificios-cerca-obstaculo-1636172/

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Valdeci Santana

Escritor. Autor de 4 romances: "As palavras e o homem de bigode quadrado", "A prima Rosa", "Dia vermelho" e "O rei da Grécia" Palestrante, contista e apresentador no programa #Cultura Tv Batatais

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2 Comentários

  1. Gostei imenso dessa narrativa! A Morte como narrador me chama muito atenção. Normalmente, a vemos na versão feminina e sempre calada…
    Um grande texto!

    1. Primeiramente, lhe peço infinitas desculpas pela demora em lhe responder! Tive questões pessoais que justifica isso. E, mais do que tudo, lhe agradecer pelo elogio. Fico muito feliz em receber este Feedback. Obrigado por apreciar!!

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