Oswaldo Eurico Rodrigues

De cachorros e outros pavores

Nunca tive um cachorro de estimação. Alguns gatos perambulavam pela casa desde sempre até o momento em que o destino (essa coisa quase entidade que usamos como desculpa para explicar nosso sucesso e fracasso) resolveu dar o ar da sua graça. E o Ulisses, o Leôncio e a Leontina entraram na nossa vida! Os dois últimos eram irmãos e tiveram quatro filhotes. Outros gatos desciam do céu pelo pé de buganvília. Eis as criaturas se exibindo no quintal.

Numa casa cheia de gatos, alguma estrepolia acontecia. Os filhos da Leontina e do Leôncio, o Leopoldo e a Leopoldina urinaram em dois livros autografados de literatura infantil. Eles tinham medo do Bruxo do Cosme Velho e da ucraniana mais brasileira do mundo. Ambos moram comigo sempre. Sabem de uma coisa? Acho que os gatos são injustamente ligados às bruxas. Nunca acreditei nisso porque não acredito em bruxas, mas elas continuam existindo modernas, bonitas e chiques sem vassoura, pois são empresárias, artistas e até cientistas. Em magos também não creio. Eles, porém, estão por aí como megainvestidores, designers gráficos, cineastas. Esses últimos fazem nossa imaginação chegar a níveis surreais.

O efeito especial de tubarão mecânico aterrorizou uma geração. O filme foi lançado no cinema em 1975 com o título original “Jaws”. No Brasil, “Tubarão”. A direção era de Steven Spielberg. A televisão aberta exibiu o filme em 1979. Estranho falar em televisão aberta para quem nasceu depois dos anos 2000… Um dia tínhamos como grande mídia a TV. Todos comentávamos, no dia seguinte, sobre as notícias na emissora mais famosa (e poderosa) do Brasil. As concorrentes eram poucas. Dependendo da região, mais umas quatro ou cinco disputavam audiência. Nada comparado aos milhões de canais do YouTube. Tínhamos mais assuntos em comum. Os medos também eram. E foi o que ocorreu com a minha geração: um medo irracional de tubarão. Milhões de pessoas adquiriram fobia coletiva em relação ao assassino cartilaginoso dos mares. Eu sou um desses fóbicos! Já experimentei os medos criados na minha geração: medo da AIDS, do vírus ebola, da hiperinflação… Os pavores antigos, ancestrais ficavam sufocados, mas não morriam entre as crianças e as pessoas mais simples do lugar onde eu morava. Havia loucos simpáticos pelas ruas. Pessoas sem necessidade de esconder sua idiossincrasia porque não havia perfis perfeitos nas redes sociais para dizer como deveríamos ser. A maioria de nós podia manter suas peculiaridades desde que não ferisse os bons costumes e nem houvesse desrespeito pelos demais. As zombarias existiam, mas não a violência midiática explícita e nem cobranças sobre o visual das pessoas. Dentre os diferentes mais explícitos, havia um senhor cujo apelido era Seu Taquinho.

Nunca soube por que o chamavam de Seu Taquinho. Creio que ninguém sabia seu nome. Ele morava numa rua transversal entre a rua da Dona Dondoca e a rua de Xoxa, do lado esquerdo da ladeira, numa casa nos fundos do terreno todo cercado de plantas diferentes das demais. As árvores frondosas tinham cipós enormes. Ninguém se atrevia a visitar esse senhor de estatura baixa, bem magro, de pele clara e bigodinho. Era parecida com Hitler. Seus cabelos, porém, eram ralos e cacheados, sempre despenteados. O seu sorriso lembrava o de Carlitos. Quando sorria a imagem do ditador alemão sumia. Seu jeito de caipira espantava o Führer e o porte pequeno afastava de nós o pavor, mas o desleixo e a sujeira faziam a distância entre o personagem e os moradores do bairro aumentar. O afastamento o deixou vulnerável. Uma lenda se apossou do imaginário de algumas pessoas e ele foi transformado em lobisomem. Não sei quem o mordeu. Ninguém sabe. Ele está morto há muitos anos. Hoje resolvi ressuscitá-lo. Levei muitos anos buscando coragem para falar sobre esse homem. Eu o vi poucas vezes na minha infância. Menos ainda na minha adolescência. Talvez não quisesse ser visto por ele para me proteger dum possível ataque. Como nunca prestava atenção às fases da lua, não sabia o dia da transformação em cachorro. No meu bairro, os lobisomens eram um híbrido entre homem e cachorro. Eram homens amaldiçoados que se transformavam em canídeos enormes. Era uma variação da lenda, pois não temos lobos. Temos cães. Os do meu bairro reviravam-se em galinheiros em dias de lua cheia e se transformavam na criatura horrenda. Seu Taquinho não era o único. Havia também um peixeiro cuja transformação ocorria no bairro vizinho de Itaoca. Lá a fauna era mais preservada e havia mais criações de animais do que no Porto do Rosa. Em resumo, o peixeiro tinha mais estrume para se revirar do que o Seu Taquinho.

Talvez venha dessa época e desse cenário o meu medo de cachorros e a constante recusa em criar um desses bichos seja pelo medo de estar abrigando um filhote de lobisomem em casa. Os medos criam fantasmas e criaturas bizarras oriundas de todos os lugares.  Os preconceitos também semeiam os medos. Estava com tanto receio de escrever! Os gatos e cachorros foram na frente como bois de piranha. Eu cheguei depois mais seguro. Navego ainda com medo de piratas e de vírus. Para esses as balas de prata não funcionam. Atacam em todas as fases lunares, de dia e de noite. Não há feitiço nem magia capaz de desfazer os ataques vindos da internet. Roubam senhas, roubam dinheiro, falsificam nomes. Os lobisomens e outros monstros ficam morando nos filmes e nos livros. Alguns talvez tenham buscado refúgio nos lugares mais remotos do nosso e de outros países. Hoje os monstros espalham notícias falsas na internet, convencem pessoas. Pessoas incautas disseminam outras falsas notícias. Não precisamos mais de feitiços em caldeirões tampouco de mordidas de vampiro para nos transformarmos em monstros também. O terror atual transforma pessoas em zumbis a servirem seus amos e a atacarem gente de saúde emocional e intelectual frágeis. Não há Van Helsing capaz de capturar tanto monstro. A quantidade de água benta daria para irrigar um deserto.

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2 Comentários

  1. Amei esse medo exposto de um “fenômeno natural” levando em conta nossa imaginação. Nunca tinha pensando nessa transformação em vida real… mais um texto que marcou quanto um novo olhar para algo!

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